03/08/2020

Teologia não é história

Como todo jovem evangélico aficcionado por Bíblia, eu comecei meus estudos teológicos com a sistemática, e passei muitos anos pensando na Bíblia com o pressuposto da sistematização de seus ensinos, isto é, acreditando que os livros que compõem a Bíblia devem ser analisados como um todo coerente e sem contradições que é completo em si mesmo, onde cada texto pode e deve ser explicado à luz dos outros.

A minha intenção por trás de toda a incessante leitura da teologia sistemática sempre foi entender aquilo que os autores bíblicos queriam dizer, e isso, com o passar do tempo, me fez deixar a sistemática de lado porque percebi que, com ela, eu não estava entendendo o que os autores bíblicos pensavam, mas aquilo que os teólogos sistemáticos e suas diversas correntes pensavam. Com essa percepção, acabei dando mais atenção à exegese e história, que são a base para a sistemática, mas que, a meu ver, são mais seguras quando o assunto é entender aquilo que os autores bíblicos disseram.

Teologia não é história, e as duas não podem ser misturadas ou confundidas. O que percebi é que, em seu esforço para compreender o todo do pensamento de Deus na Escritura Sagrada, os teólogos sistemáticos não conseguem separar bem as coisas e acham que a teologia de sua tradição é a mesma teologia de Jesus e os apóstolos. Em outras palavras, eles cometem anacronismo quando não entendem que a sua teologia é desenvolvimento e não representa exatamente aquilo que os escritores bíblicos pensavam. Isso acaba causando confusão de método na leitura e interpretação dos textos, pois a sistemática pretende fazer algo com a Bíblia que a própria Bíblia não pretende fazer com ela mesma, isto é, a teologia sistemática acaba unindo a diversidade da Bíblia de uma maneira forçada, o que gera tradições, mas acaba traindo o sentido original dos textos. Não digo que isso não é legítimo, nem que está errado, só não acho que seja o caminho para entender os textos.

O fazer teologia em cima de textos antigos, por mais que eles falem de teologia, é algo diferente de apenas tentar entender esses textos por aquilo que eles são em si mesmos. Apesar de ser importante e válida, a sistemática não se preocupa essencialmente em explicar a intenção dos autores, mas com a criação de um sistema de pensamento bíblico global que não parece ter sido a intenção dos autores. Além de gerar tradição, a sistemática é resultado de tradição: ela faz algo que não é simplesmente entender o texto, mas interpretá-lo dentro do desenvolvimento de pensamento teológico da igreja como um todo e de cada corrente específica. O problema que vejo nas sistemáticas é que os autores não foram suficientemente a fundo na base exegética para depois tentar desenvolver uma sistematização, e a maioria deles é inclinada a ler nos textos aquilo que a sua tradição diz. 

Um bom exemplo da confusão entre teologia e história é o debate sinergismo vs. monergismo e a interpretação da Carta de Tiago à luz das cartas de Paulo ou vice-versa. Tentando achar uma solução bíblica para questões modernas, o teólogo sistemático usa os textos biblicos para responder perguntas que nunca foram feitas pelos autores. Em sua ânsia para provar um ponto de sua tradição teológica, ele então coloca na cabeça dos autores pensamentos que eles nunca tiveram, simplesmente porque não conhece o contexto histórico da época e porque não fez uma exegese precisa. Com isso, dependendo de sua corrente teológica, o teólogo sistemático pensa que Paulo e Tiago eram monergistas ou sinergistas, sendo que isso nunca passou pela mente dos dois. Não que não ache que essas perguntas não podem ser feitas: elas podem e devem. Só não acho que Paulo ou Tiago as tenham feito, pois o que eles debatiam não era aquilo que Lutero debateu.

Minha pergunta seria: será que Paulo e Tiago estavam escrevendo em conjunto? Escreveram para serem lidos e sistematizados? Eu acredito que não, e não consigo mais ler a Bíblia assim, apesar de saber que é uma forma válida de fazê-lo. Essa leitura, no entanto, precisa ser feita de forma consciente: o teólogo sistemático deve entender seu papel e não misturar a sua sistematização com história. Uma coisa é ler a Bíblia com o pressuposto de que ela é a palavra de Deus e pode ser sistematizada, outra coisa é fazer exegese para entender o que cada texto significou para o autor na sua época e contexto. O meu grande problema com a sistemática é que ela confunde tradição com método histórico e coloca palavras na boca dos autores. O que notei é que se você faz a exegese corretamente, percebe que a sistemática não era a intenção dos autores.

A teologia sistemática é um tipo de filosofia; é desenvolvimento de pensamento em cima de textos que foram escritos sem a intenção de serem desenvolvidos. Visto que minha intenção sempre foi entender aquilo que os autores estavam dizendo, e não o que uma corrente de desenvolvimento teológico tem a dizer, acabei focando minha atenção no estudo da base exegética e histórica. Isso tem me trazido problemas de sistemática, mas ainda não me preocupei em resolvê-los.

29/07/2020

A Pregação Escatológica de Jesus - Por Rudolf Bultmann

Eu já escrevi alguma coisa neste blog a respeito da importância de entender o apocalipticismo para qualquer estudante do Novo Testamento. Sem a compreensão desse contexto de pensamento judaico do segundo templo, é virtualmente impossível decifrar exatamente o que os autores queriam dizer e o que Jesus e seus discípulos, incluindo os primeiros cristãos e Paulo, pensavam.

Um dos aspectos desse contexto é a pregação escatológica de Jesus. Jesus de Nazaré era um judeu apocaliptico, e foi influenciado, assim como também influenciou e ajudou a formar, essa corrente de pensamento do judaísmo da época. Isso pode ser visto nas características de sua pregação, que está preservada na tradição sinótica.

Para nos explicar esse aspecto da pregação de Jesus de Nazaré, não existe ninguém melhor do que o mestre da exegese e estudo do Novo Testamento do século XX, Rudolf Bultmann. O texto a seguir foi retirado da sua Teologia do Novo Testamento, publicada no Brasil pela editora Academia Cristã, em 2008, e encontra-se nas páginas 41 e 42.

A Pregação Escatológica de Jesus - Por Rudolf Bultmann

O conceito predominante da pregação de Jesus é o do reinado de Deus.Jesus anuncia sua irrupção imediatamente iminente,que se manifesta já agora. O reinado de Deus é um conceito escatológico. Ele se refere ao governo de Deus que põe termo ao atual curso do mundo, que destrói tudo que é contrário a Deus, tudo que é satânico, tudo o que agora faz o mundo gemer, e, pondo desse modo um fim a todo sofrimento e dor, estabelece a salvação para o povo de Deus que espera pelo cumprimento das promessas proféticas.A vinda do reino de Deus é um evento maravilhoso, que se realiza sem contribuição humana, unicamente por iniciativa de Deus.

Com essa pregação Jesus se encontra no contexto histórico da expectativa judaica do fim e do futuro. E está claro que o que a determina não é a imagem da esperança nacionalista, ainda viva em determinados círculos do povo judeu, que imagina o tempo da salvação estabelecido por Deus com o restabelecimento do antigo reino davídico, transfigurado à luz de um ideal. Nenhuma palavra de Jesus fala do messias-rei, que esmagará os inimigos do povo; nenhuma palavra sobre o domínio do povo de Israel sobre a terra, da reunião das doze tribos ou dafelicidade no país rico, pleno de paz. Pelo contrário, a pregação de Jesus está ligada à esperança de outros círculos, testemunhada sobre tudo pela literatura apocalíptica, uma esperança que não espera a salvação de uma maravilhosa mudança das condições históricas, políticas e sociais, e, sim, de uma catástrofe cósmica, que põe termo a todas as condições do atual curso do mundo. O pressuposto dessa esperança é a concepção dualista-pessimista da corrupção satânica da estrutura do mundo como um todo; e essa ideia encontra sua manifestação na doutrina específica dos dois éones, nos quais está dividido o curso do mundo: o velho éon está prestes a acabar e em meio a terror e sofrimento irromperá o novo. O velho curso do mundo com seus períodos foi determinado por Deus e, quando chegar o dia por ele estabelecido, será realizado o julgamento do mundo por ele ou por seu representante, o "Filho do homem", que vem nas nuvens do céu; os mortos ressuscitarão, e ações tanto boas quanto más receberão sua recompensa. A salvação dos justos, porém, não consistirá em bem-estar e glória nacionalistas, e, sim, numa maravilhosa vida paradisíaca. É no contexto dessas expectativas que se situa a pregação de Jesus. Falta-lhe, todavia, toda a erudita e fantástica especulação dos apocalípticos. Jesus não olha para trás, como aqueles, para as eras mundiais já decorridas, e não faz cálculos sobre quando virá o fim; ele não ordena que se fique à espreita de sinais na natureza e no mundo dos povos, por meio dos quais se pudesse reconhecer a proximidade do fim. Ele renuncia a toda tentativa de pintar o juízo, a ressurreição dos mortos e a glória vindoura em detalhes. Tudo é tragado pelo único pensamento de que então Deus reinará; e somente alguns traços isolados da imagem apocalíptica futura se reencontram nele.

Fica claro, porém, que Jesus tem a seguinte certeza: o presente éon chegou ao fim. O resumo de sua pregação na palavra cumpriu-se o tempo e o reino de Deus está próximo corresponde aos fatos. Jesus está convencido de que o atual curso do mundo está sob o domínio de Satanás e seus demônios, cujo tempo agora passou (Lc 10.18). Ele espera a vinda do "Filho do homem" como juiz e salvador (Mc 8.38; Mt 24.27 par., 37 par., 44 par.) Ele espera a ressurreição dos mortos (Mc 12.18-27) e o juízo (Lc 11.3s. par., etc.), compartilha a ideia do inferno de fogo, no qual são lançados os condenados (Mc 9.43-48; Mt 10.28). Para referir-se à bem-aventurança dos justos usa a simples designação vida (Mc 9.43, 45, etc.). Ele fala naturalmente da ceia celestial, em que se reclinarão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó (Mt 8.11), ou ainda da esperança de beber novamente o vinho no reino de Deus (Mc14.25); mas ele também diz: "Quando ressuscitarem dos mortos, não pedirão em casamento nem serão pedidos em casamento, e, sim, serão como os anjos no céu" (Mc 12.25).

Assim, Jesus de fato assume a imagem apocalíptica do futuro, mas numa forma bastante reduzida. O novo e próprio, porém, é a certeza com que afirma: "O tempo chegou! O reino de Deus está irrompendo! O fim está aí!"



27/06/2020

R.I.P. James D. G. Dunn

I normally write in Portuguese on this blog. As it is my mother language, I feel way more comfortable using it. Besides, my objectives with this space are to try to informe my Brazilian friends about what I think is important. Today, though, I need to do something different. Last night, through a dear friend, I heard the sad news about the death of James D. G. Dunn. I got the news with a very heavy heart and decided to praise him with some words in his own language, the one which, without even knowing it, he used to form my understanding about one of my dearests interests.

Through his many books and articles, James Dunn has always been a mentor from afar for me. His understanding about the first century world, early judaism, Paul, the beginnings of Christianity and the Jesus tradition proved to be incredibly helpful to change my mind about everything I thought I knew regarding the New Testament and it's history of formation. It was mainly through Dunn's academic work that I could finally understand why there's such an amazing difference between the gospels, how the oral tradition makes sense of this difference and in what way we can approach the NT with a fair methodology, while his work on the new perspective on Paul made it possible for me to finally unite the loose ends my previous research had left behind.

Although I've never meet him, it always felt to me that he was like a friend and teacher. Having read more or less three thousand pages he wrote, Dunn normally was the last person to talk to me every night. Living in the UK for the last couple of years, one of my dreams was to meet him as I discovered he lived two and a half hours by train away from my house; I dreamed about having a cup of coffee with Dunn and thanking him personally for everything he had taught me, or maybe just to take a picture standing next to the legend. Unfortunately, this will not be possible anymore, at least not in this life.

This is now the only way I can express my gratitude to Professor Dunn and say that he is still teaching me loads and loads about one of the most important topics of my life as I'm right in the middle of Christianity In The Making Volume Two. May he rest in peace and his family be comforted. Maybe one day we can finally meet and have a good conversation. Thank you, Jimmy!

19/06/2020

Marcos 14:61-62 como exemplo da relação da tradição sinótica

Quem está mais familiarizado com o estudo dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas -- João fica fora da lista por ter uma natureza diferente dos outros três) sabe que o consenso acadêmico sobre a ordem de escrita dos Evangelhos coloca Marcos como o primeiro e como fonte para Mateus e Lucas, isto é, o texto de Marcos foi usado pelos outros dois. É por isso que temos tanta coisa parecida e até mesmo repetida nesses três documentos. Existem textos que são evidentemente os mesmos, mas não exatamente: algumas palavras/expressões/trechos são modificados, o que deixa transparecer a edição/alteração que os autores fizeram de sua fonte. Normalmente (e logicamente, com a proeminência marcana), as modificações são feitas por Mateus e Lucas, os quais frequentemente buscam dar a sua própria ênfase àquilo que copiaram de Marcos. Mas nem sempre isso acontece: às vezes, quem parece ter alterado a tradição de Jesus foi Marcos. Um exemplo disso são os textos paralelos de Mc. 14:61-62, Mt. 26:63-64 e Lc. 22.70:

Marcos: Tornou a interrogá-lo o sumo sacerdote e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito? Jesus respondeu: Eu sou.

Mateus: E o sumo sacerdote lhe disse: Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus. Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste.

Lucas: Então, disseram todos: Logo, tu és o Filho de Deus? E ele lhes respondeu: Vós dizeis que eu sou.

Quanto lemos esses textos, logo nos perguntamos qual era a intenção do evangelista em substituir as palavras de sua fonte. No caso de Marcos ter servido de fonte para os outros dois evangelhos sinóticos, normalmente se pergunta qual foi o motivo do texto de Marcos ter sido alterado. Se esse fosse o caso nesse exemplo, a alteração poderia ter sido apenas a forma que Mateus e Lucas usaram para deixar a resposta de Jesus menos brusca; apenas uma forma de mudar o estilo literário para transparecer algo mais suave. Isso, no entanto, é pouco provável, e por um motivo muito simples: por que Mateus e Lucas deixariam uma resposta tão afirmativa e clara sobre a messianidade de Jesus se tornar algo tão ambíguo? É mais provável que esse seja um exemplo de uma tradição modificada por Marcos, não por Mateus e Lucas, isto é, eles conheciam essa mesma história dentro de suas comunidades com essa outra ênfase e resolveram escrever a versão com a qual estavam mais familiarizados. Ou seja, é mais provável que Marcos tenha alterado uma tradição mais ambígua do que Mateus e Lucas terem alterado algo tão forte para algo mais brando. E é claro que, se Marcos foi escrito primeiro, não podemos dizer que o evangelista alterou uma fonte escrita, um texto, mas sim uma tradição oral, o produto da tradição sobre Jesus que se tornou a base para a escrita dos Evangelhos.

Exceto por Marcos 14:62, todas as respostas são ambivalentes: "tu dizes (su eipas, su legeis)". Existe alguma dúvida sobre a exceção de Marcos, mas, mesmo que concluamos que o texto original de Marcos seja de fato o inequívoco 'eu sou (egō eimi)', é mais provável que Marcos tenha modificado um ambíguo 'tu dizes' (ou equivalente), fazendo da resposta de Jesus uma afirmação retumbante, e não que Mateus tenha transformado um "sim" tão inequívoco em um insatisfatório "você diz isso" = "essa é a sua maneira de expressar isso". (DUNN, Jesus Remembered).

Mateus e Lucas conheciam uma versão diferente da tradição e resolveram escrever o que conheciam, mesmo que essa versão fosse diferente de uma de suas fontes escritas. Isso significa que a tradição original provavelmente falava de Jesus se esquivando do título de messias-rei, porque o título de messias como o rei vencendor político não servia para Jesus se definir.

O ponto, então, é que a resposta que Jesus é lembrado como dando a Caifás e a Pilatos foi provavelmente a mesma: 'Você diz'. O que isso demostra sobre a intenção de Jesus ao dar essa resposta? Pelo menos uma falta de vontade de aceitar o título de Messias/rei, ou, para ser mais preciso, uma falta de vontade de aceitar o papel que o título indicava ao questionador. Isso implica, então, que Jesus aceitou o título em um sentido diferente? Todos, exceto Marcos, e apenas na resposta a Caifás, indicam que "Messias" era um termo que Jesus preferia não usar para seu próprio papel. Essas trocas são importantes, pois exemplificam um dilema que Jesus deve frequentemente ter enfrentado: ele poderia aceitar ou usar um título que implicava um papel que não estava disposto a aceitar?  (DUNN, Jesus Remembered).

O que isso nos diz sobre a origem dos evangelhos sinóticos? O material da tradição sinótica não surgiu num vácuo. Ele apresenta desenvolvimento e interpretação, mas a sua fonte foi o ensinamento de Jesus que perdurou através dos seus discípulos e das primeiras comunidades cristãs. Ou seja, através da tradição sobre Jesus registrada nos sinóticos, podemos chegar no Jesus conforme relembrado pelos discípulos, ainda que não tenhamos um registro exatamente perfeito do que realmente aconteceu. Jesus de Nazaré, através de sua vida, ensinamento e ações, impactou seus discípulos de forma duradoura. Ele causou uma forte reação nos discípulos, e essa reação começou ainda antes da Páscoa. Dito de outra maneira: a tradição sobre Jesus começou a se formar ainda durante a sua vida, e é por isso que podemos assumir que, dentro daquela sociedade oral, o serne, o núcleo de várias histórias sobre Jesus (que formam a tradição sinótica) foram contadas e recontadas desde o início e chagaram até nós na cristalização dessa tradição oral escrita nos evangelhos.

10/06/2020

Paulo, o judeu

Quando pensamos em Paulo no caminho para Damasco, imaginamos que o apóstolo dos gentios teve uma experiência de conversão, isto é, com a visão do Cristo Ressurreto, Paulo deixou de ser um judeu legalista para se tornar um cristão. Essa interpretação, além de antissemita em suas implicações, vai completamente contra aquilo que o próprio Paulo escreveu sobre a sua religião.

A teologia paulina protestante no ocidente foi totalmente desenvolvida dentro de uma perspectiva de culpa interior e arrependimento, desde Agostinho, passando por Lutero e chegando até mesmo a Bultmann; isto é, aquilo que Paulo escreveu foi interpretado à luz da experiência pessoal de Agostinho e, principalmente, Lutero. O reformador alemão achava que Paulo, o judeu, lutava com seus pecados internos como ele, Lutero, lutava; achava que Paulo era como um católico atribulado pela culpa trazida pela lei que, ao encontrar o cristianismo, deixou o seu antigo eu para trás (junto com todo o sistema judaico, o qual ele interpretava como sendo legalista e exterior), e se libertou da condenação da lei através da graça do evangelho.

"A interpretação que os reformadores fizeram de Paulo repousa sobre um analogismo onde as declarações paulinas sobre fé e obras, lei e evangelho, judeus e gentios são lidas no quadro da piedade medieval tardia. A Lei, a Torá, com seus requisitos específicos de circuncisão e restrições alimentares, torna-se um princípio geral de "legalismo" em assuntos religiosos. Onde Paulo estava preocupado com a possibilidade doa gentios serem incluídos na comunidade messiânica, suas declarações agora são lidas como respostas à busca de segurança sobre a salvação do homem." (Krister Stendahl (1963), The Apostle Paul and the Introspective Conscience of the West. Harvard  Theological Review, 56, pp 199-215).

Contudo, ao lermos as cartas de Paulo, percebemos que ele nunca teve problemas com seus pecados quando ainda era um adepto da seita dos fariseus. O apóstolo afirma que era perfeito em seu judaísmo, e isso com certeza envolvia o sacrifício no Templo para perdão de pecados. O que Paulo mudou foi sua visão sobre a vinda do Messias e o que isso significava para a lei na inclusão de gentios dentro do povo de Deus. O que Paulo jogou fora não foi a lei em si, mas o papel que a lei tinha na separação étnica entre judeus gentios. Contudo, ao falar de sua conduta no farisaísmo antes de virar um adepto da seita dos nazarenos, Paulo afirma que era exemplar, e não demonstra nenhum problema com culpa interior por causa de uma consciência pesada devido aos seus pecado:

"Se alguém pensa que tem razões para confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado no oitavo dia de vida, pertencente ao povo de Israel, à tribo de Benjamim, verdadeiro hebreu; quanto à lei, fariseu; quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível." (Filipenses 3:4-6 NVI)

Mesmo em Romanos 7, o assunto não é o sentimento de culpa interior causado pela lei, mas a razão pela qual a lei não pôde livrar o homem do pecado de Adão.

Paulo nunca deixou de ser judeu; nunca abandonou a sua religião; nunca se viu saindo de uma religião e indo para outra. Tudo o que ele via como importante no judaismo continuou sendo importante, com uma diferença de perspectiva sobre um ponto muito específico: o papel da lei como identificação étnica dos judeus não era mais o que marcava o povo de Deus. Com a vinda do Messias Jesus, a crença nele e em tudo o que isso envolvia era suficiente para se dizer povo da aliança; é daí que deriva a sua teologia sobre a participação dos gentios nas promessas que eram para os judeus: como fica a situação de quem não é judeu à luz da chegada do Messias Jesus? 

Assim, Paulo não viu o seu judaísmo como ficando para trás com a vinda de Jesus. Na realidade, o surgimento do Messias era justamente o cumprimento de toda a expectativa de Paulo quanto ao seu judaísmo. Especificamente sobre o Templo, me parece que Paulo, apesar de toda a sua teologia sobre a redenção e ablação na morte de Jesus, ainda via o Templo como algo extremamente importante, e Jerusalém como central para a sua fé. Paulo não joga a lei fora, ele apenas diz que um aspecto dela já não valia mais porque o Messias havia chegado, e isso atualizava algumas coisas.

08/06/2020

A Tradição Oral dos Evangelhos (Parte 4) -- por James D. G. Dunn

Tenho me convencido cada vez mais de que o melhor ponto de partida para o estudo da maior parte da tradição sinótica é enxergá-la como as memórias sobre Jesus que as igrejas mais antigas tinham e que eram recontadas e reutilizadas por essas igrejas. A importância dos mestres e da tradição é muito bem atestada pelos documentos mais antigos do Novo Testamento (por exemplo: mestres -- At 13:1, 1Co 12:28, Gl 6:6; tradição -- 1Co 11:2, Cl 2:6, 1Ts 4:1, 2Ts 2:15 e 3:6). Os próprios evangelhos sinóticos são surpreendentemente semelhantes às biografías antigas (não às modernas); e a probabilidade a priori de que os primeiros grupos estimavam e recontavam entre si as memórias daquele que agora tinham como Senhor, isto é, as tradições que lhes deram motivos para sua existência distinta, deve ser considerada como algo forte. Essa perspectiva difere significativamente do modelo caracteristicamente literário, o qual exerceu demasiada influência na análise da história da tradição do material sinótico, e também difere da tarefa de análise como algo que busca traçar a descendência linear de uma tradição ao longo de camadas elaboradas de maneira sucessiva, com cada nova camada dependendo da camada anterior -- muito parecido com o que se faz na crítica textual ou ao se traçar a história das traduções da Bíblia. Esse modelo é inapropriado para ser aplicado em tradições orais, pois, numa tradição oral, lidanos com temas, fórmulas e material de núcleo que, frequentemente, permanecem constantes enquanto uma grande gama de variações são misturadas a esse material temático/central. O ponto é que uma variação não precisa necessariamente levar à outra; variações subsequentes podem derivar diretamente do tema central ou núcleo. Consequente, a análise da história da tradição que está buscando chegar no Jesus como ele era não precisa se consistir somente de uma reversão através de diferentes variações, mas essa análise pode se focar imediatamente no material que é mais constante, porque a probabilidade é que o material mais constante é o núcleo vivo das recordações mais antigas sobre Jesus, o qual manteve a vitalidade da tradição dentro de todas as suas formas variantes.

Em resumo, eu vejo os oradores/mestres/transmissores mais antigos dentro das igrejas cristãs mais como preservadores do que inovadores, como pessoas buscando transmitir, recontar, explicar, interpretar, elaborar, mas não buscando criar do zero. Eu creio que, através da tradição sinótica, temos, na maioria dos casos, acesso direto ao ensino e ministério de Jesus conforme relembrados desde o início do processo de transmissão (o qual frequentemente inicia antes da Páscoa), e, assim, também temos acesso suficientemente direto ao ministério e ensino de Jesus através dos olhos e ouvidos daqueles que andavam com ele.

Fonte: James D. G. Dunn, "Messianic Ideas and Their Influence on the Jesus of History", em The Messiah, ed. James H. Charlesworth, pp. 371-2.

05/06/2020

A inimizade entre o homem e a serpente

"Então, o Senhor Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isso, maldita serás mais que toda besta e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás e pó comerás todos os dias da tua vida.
E porei inimizade entre ti e a mulher e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar." 
Gênesis 3:14-15 ARC.

"O significado geral da frase é claro: na guerra entre homens e serpentes, o primeiro esmagará a cabeça do inimigo, enquanto o último só pode ferir no calcanhar... A tentativa da serpente de estabelecer uma comunhão profana com a mulher é punida através de uma inimizade implacável e eterna entre elas." John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, p. 79.

Nos capítulos iniciais de seu livro, o autor (editor?) de Gênesis está tentando responder como o homem chegou no estado em que está. Por que existe dor, sofrimento, morte? Por que a mulher sente dores de parto e precisa depender dos homens? Para responder isso, ele usa uma lenda antiga que afirmava que a desobediência/pecado/erro/mal surgiu ou foi instigado por uma serpente (literal), uma versão mais antiga da narrativa da queda que foi reeditada em Gênesis 3. Nessa versão mais antiga, a serpente possivelmente era retratada como um deus ou demônio. Isso explica por que, no texto editado de Gênesis 3, a serpente é apenas mais um dos animais criados por Deus, mas tem astúcia e pode falar; dito de outra forma: o autor de Gênesis reescreveu um mito antigo para explicar como o homem se meteu nessa enrascada na qual nos encontramos.

Dentro dessa lenda está a ideia de que a serpente e o homem se tornaram inimigos porque a serpente tentou manipular o homem contra Deus numa espécie de aliança profana. O criador descobriu tudo e, como punição, fez com que toda a espécie humana e todas as serpentes (a semente da mulher e a semente da serpente) se tornassem inimigos para sempre. Isso, para o autor, explica por que existe uma contenda entre os homens e as cobras, e também por que as cobras não andam eretas.

Por mais incrível que isso pareça para nós depois de tantos séculos de desenvolvimento teológico que nos fazem ler esse texto de forma tão diferente e até extremamente alegórica, o fato é que o autor usa uma mentalidade antiga onde as serpentes eram vistas com certa aura sobrenatural para explicar os problemas da humanidade: Deus sentenciou o homem ao sofrimento por causa de uma desobediência incitada por um animal; mas não foi apenas o homem que sofreu as consequências: as serpentes também foram condenadas a comer poeira e rastejar no chão, além de terem uma inimizade eterna com a humanidade; assim como todos os homens receberam as penas de Adão, assim também todas as serpentes receberam as penas da serpente do jardim, a serpente arquétipa.

Com o passar dos milênios, as teologias judaica e cristã colocaram muito mais coisas nesse texto, mas nada disso está lá; é apenas desenvolvimento teológico em cima da narrativa original.

04/06/2020

A evolução do pensamento religioso no Antigo Testamento

Para o pensamento religioso antigo, o mundo era cheio de divindades e outras entidades sobre-humanas. Esses seres invisíveis estavam trabalhando no mundo, moldando a história e influenciando a humanidade. Os poderes invisíveis controlavam a sorte dos indivíduos, às vezes para o benefício, e às vezes para o dano de uma pessoa. A ascensão e queda das nações estavam sujeitas a decisões e ações tomadas por deidades. Os autores das escrituras hebraicas compartilharam esse entendimento do mundo.

A literatura das escrituras hebraicas centra-se na atividade de Javé, o Deus de Israel, no mundo, especialmente no que se refere ao povo de Israel. Enquanto numerosas passagens reconhecem a existência de outros seres divinos, apenas um pequeno número de passagens sugere que uma divindade estrangeira ou um deus que não seja Javé possa abençoar ou criar problemas para Israel.

Embora outras divindades que não sejam o Deus de Israel estejam presentes nas escrituras hebraicas, mais tipicamente é dito que somente Javé pode controlar o destino de Israel. Frequentemente, no entanto, as escrituras hebraicas falam de vários seres sobre-humanos que servem como agentes divinos para cumprir os propósitos de Deus entre a humanidade. Enquanto alguns desses seres são agentes de Deus para abençoar os justos, alguns deles são agentes de Deus para julgar os iníquos. Esses agentes de julgamento incluem seres "angelicais" que levam a morte aos inimigos de Deus e "espíritos" que, de várias formas, afligem e enganam os iníquos. (Ryan E. Stokes, The Satan: How God’s Executioner Became the Enemy.)

Os estudiosos têm confirmado que a concepção de universo difundida entre os povos antigos afirmava que as várias forças naturais eram entendidas imbuídas de poder divino, como sendo, de certo modo, divindades. A terra era uma divindade, o céu era uma divindade, a água era uma divindade ou possuía poder divino. Em outras palavras, os deuses eram idênticos ou imanentes às forças da natureza. Havia, portanto, muitos deuses, e nenhum deus era todo poderoso.

Existem fortes evidências sugerirndo que a maioria dos israelitas antigos compartilhava essa visão de mundo. Eles participaram, nos estágios iniciais de sua história, da cultura religiosa e cultual mais ampla do antigo Oriente Próximo. Ao longo do tempo, no entanto, alguns israelitas antigos, não todos de uma só vez, nem de forma unânime, romperam com essa visão e articularam uma visão diferente segundo a qual existia apenas um poder divino, um deus. Mais importante que a singularidade desse deus era o fato de ele estar fora e acima da natureza. Esse deus não era identificado com a natureza; ele transcendia a natureza. Esse deus não era conhecido através da natureza ou dos fenômenos naturais; ele era conhecido através da história e de um relacionamento particular com a humanidade.

Essa idéia -- que parece a princípio parece simples e não tão revolucionária -- afetou todos os aspectos da cultura israelita, e de certa forma garantiu a sobrevivência dos antigos israelitas como uma entidade étnico-religiosa. A visão de um deus totalmente transcendente com controle absoluto sobre a história tornou possível para alguns israelitas interpretar até os eventos mais trágicos e catastróficos, como a destruição de sua capital e o exílio da nação, não como uma derrota do deus de Israel ou mesmo a rejeição deles por parte desse deus, mas como uma parte necessária do propósito ou plano maior da divindade para Israel. (Christine Hayes, Introduction to the Bible).

02/06/2020

A diferença entre história e teologia -- por Paula Fredriksen

O pensamento crítico pode transformar aquilo que é familiar em algo estranho; ou -- para reformular essa observação em uma linguagem talvez mais atraente -- ele atualiza o material, tornando o velho, o familiar, em novo. Esse exercício intelectual é o primeiro passo necessário para encontrar a figura histórica de Jesus. O medo da falsa familiaridade é o começo da sabedoria histórica. Insista para que Jesus faça sentido imediato para nós, e o passado se transforma em um espelho, uma superfície refletora que só mostra nós mesmos. Reconheça -- não tenha medo! -- a enorme distância entre nós e Jesus (como entre nós e qualquer pessoa antiga), e os textos podem se tornar janelas, não espelhos. Podemos examiná-los para vislumbrar, ainda que imperfeitamente, as realidades humanas que estão, de forma última, por trás deles.

Se assim o fizermos, o que veremos nesses textos a respeito de Jesus? O ser humano que até a forte metafísica da alta teologia antiga insistia que estava lá. A tentativa exige um certo tipo de coragem religiosa, porque significa separar a história da teologia e permitir que cada uma, com integridade, faça o seu respectivo trabalho. A história requer o reconhecimento da diferença e a prioridade do contexto antigo. Isso significa que, se começamos a procurar o Jesus de Nazaré histórico, a pessoa que procuramos fica de costas para nós, com o rosto voltado para os rostos de sua própria geração.

Se, como crentes modernos, ainda assim exigimos que Jesus seja moralmente inteligível e religiosamente relevante para nós, recai sobre nós o trabalho necessário de reinterpretação criativa. Esse projeto não é histórico (a construção crítica de uma figura antiga), mas teológico (a geração de significado contemporâneo dentro de determinadas comunidades religiosas). Inevitavelmente, múltiplas e conflitantes reivindicações teológicas surgirão, tão diversas quanto as diferentes comunidades que estão por trás delas. Nesse sentido, a tolerância cristã moderna da diferença doutrinária entre igrejas, seu princípio ecumênico, também é um bom modelo emocional e ético para tolerar a diferença histórica. Manter em vista as distinções entre pessoas antigas e modernas pode impedir o uso da pseudo-história como uma espécie de suporte empírico para os compromissos teológicos modernos (por exemplo, Jesus, o agitador antitemplo, endossando o anti-hierarquicalismo moderno). A história interpreta o passado. A teologia reinterpreta, não o passado, mas a tradição religiosa.

Mas a reinterpretação teológica não deve ser confundida com (nem apresentada como) descrição histórica. Considerar Jesus historicamente exige liberá-lo do serviço a nossas preocupações modernas ou identidade confessional; significa permitir-nos vê-lo em sua alteridade irredutível, como o Estranho da descrição poética que Schweitzer usou para finalizar seu livro sobre a busca do Jesus Histórico: "Ele chega até nós como um desconhecido, sem nome, como vindo de antigamente, à beira do lago." Quando renunciarmos a falsa familiaridade proferida a nós pelos anjos das trevas chamados relevância e anacronismo, poderemos ver Jesus, seus contemporâneos e talvez até nós mesmos mais claramente em nossa humanidade comum.

Fonte: Paula Fredriksen, Jesus: “Who Do You Say That I Am?”

29/05/2020

Por que Gênesis 1 não é ciência (Parte 5) - A Geografia Cósmica da Bíblia

A geografia cósmica diz respeito a como as pessoas visualizam a forma e a estrutura do mundo ao seu redor. De acordo com nossa geografia cósmica moderna, vivemos em uma esfera de continentes cercados por oceanos. Acreditamos que essa esfera faz parte de um sistema solar de planetas que giram em torno do Sol, que é uma estrela. Nosso planeta também gira, e a lua gira em torno dele. Nosso sistema solar faz parte de uma galáxia, que juntamente com muitas outras galáxias compõem o universo. Os pontos de luz que percebemos como estrelas estão longe, e algumas são outras galáxias, enquanto outras são sóis. O fato de isso parecer tão elementar e básico mostra o quão profundamente essa geografia cósmica está enraizada em nossa compreensão de nós mesmos. Todo mundo tem uma geografia cósmica e sabe o como ela é -- ela é como uma segunda natureza para nós.

O ponto é que a geografia cósmica de uma cultura desempenha um papel significativo na formação da visão de mundo dessa cultura e oferece explicações para as coisas que observamos e experimentamos. Por exemplo, observe algumas das implicações da geografia cósmica que acabamos de descrever: ela sugere a nossa relativa insignificância na vastidão do universo; é a base para entender o o clima e o tempo; trabalha com a premissa de que a geografia cósmica é física e material;  opera com consistência e previsibilidade com base nas propriedades físicas e leis do movimento. Essa geografia cósmica foi deduzida ao longo de séculos através de um processo de observação, experimentação e dedução. Estamos totalmente convencidos de que ela é "verdade", embora pequenos ajustes ocorram o tempo todo. Ela é o resultado do que chamamos de "ciência".

No mundo antigo, as pessoas também tinham uma geografia cósmica que era tão intrínseca ao seu pensamento, tão fundamental com relação a sua visão de mundo, tão influente em todos os aspectos de suas vidas e tão verdadeira em suas mentes quanto a nossa é para nós hoje; e ela diferia da nossa em todos os pontos. Se aspiramos entender a cultura e a literatura do mundo antigo, seja cananeu, babilônico, egípcio ou israelita, é essencial que compreendamos a sua geografia cósmica. Apesar das variações de uma antiga cultura do Oriente Próximo para outra, existem certos elementos que caracterizam todas elas.

O que mantinha o céu suspenso acima da terra e retinha as águas celestiais? O que impedia o mar de invadir a terra? O que impedia a Terra de afundar nas águas cósmicas? Essas foram as perguntas que as pessoas fizeram no mundo antigo, e as respostas às quais chegaram estão incorporadas na sua geografia cósmica. Egípcios, mesopotâmicos, cananeus, hititas e israelitas pensavam no cosmos em termos de camadas: a terra estava no meio, com os céus acima e o mundo subterrâneo embaixo. Em geral, as pessoas acreditavam que havia um único continente em forma de disco. Este continente tinha montanhas altas nas bordas que sustentavam o céu, o qual eles pensavam ser sólido de alguma forma (ou ele era visto como uma tenda ou como uma cúpula mais substancial). Os paraíso onde a divindade habitava estava acima do céu, e o mundo subterrâneo estava abaixo da terra. Em algumas literaturas da Mesopotâmia, os céus eram entendidos como sendo constituídos por três discos sobrepostos com pavimentos de vários materiais. O que eles observaram os levou a concluir que o Sol e a Lua se moviam aproximadamente nas mesmas esferas e de maneiras semelhantes. O Sol se movia ao longo do céu durante o dia e se deslocava para o mundo subterrâneo durante a noite, onde atravessava por baixo da terra até o lugar onde nasceria no dia seguinte. As estrelas estavam afixadas no céu e se moviam através de suas estações ordenadas. Fluindo por todo esse cosmos estavam as águas cósmicas, que eram retidas pelo céu, e sobre as quais a terra flutuava, apesar de eles conceberem a terra como apoiada sobre pilares. A chuva originava-se das águas retidas pelo céu e caia na terra através de aberturas na cúpula. Visões semelhantes sobre a estrutura do cosmos eram comuns em todo o mundo antigo e persistiram na percepção popular até a Revolução Copernicana e o Iluminismo. Essas não eram realidades deduzidas matematicamente, mas eram a realidade de como as coisas pareciam para essas pessoas. A linguagem do Antigo Testamento reflete essa visão, e nenhum texto da Bíblia procura corrigi-la ou refutá-la.

Além dessa descrição física, é importante perceber que a geografia cósmica dessas pessoas era predominantemente metafísica e apenas secundariamente física/material. O papel e a manifestação dos deuses na geografia cósmica eram primordiais. Por exemplo, no pensamento mesopotâmico, cabos presos pelos deuses ligavam os céus e a terra e mantinham o Sol no céu. No Egito, o deus do Sol navegava em sua barca pelo céu durante o dia e pelo mundo subterrâneo à noite. As estrelas do céu egípcio eram retratadas estampadas no corpo arqueado da deusa do céu, que era sustentada pelo deus do ar. A arte egípcia é mais explícita que a arte da Mesopotâmia ao retratar os poderes divinos por trás dos fenômenos naturais.

Fonte: John H. Walton, Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing The Conceptual World of the Hebrew Bible.

Por que Gênesis 1 não é ciência? (Parte 4) - A presença dos mitos da criação do Oriente Próximo no Antigo Testamento

Em muitas culturas antigas do Oriente Próximo, acreditava-se que o processo de criação tinha envolvido uma batalha entre o deus criador e um monstro marinho - Tiamat no Enuma Elish da Babilônia, Yamm (Mar) no mito cananeu Baal, conhecido pelos textos encontrados em Ugarit, no norte da Síria. Encontramos alusões a histórias da criação semelhantes nos livros poéticos da Bíblia Hebraica. Jó 26:12: “Com seu poder agitou violentamente o mar; com sua sabedoria despedaçou Raabe.” Ou, ainda, em Is 51:9: “Desperta, desperta, veste-te de força, ó braço do Senhor; desperta como nos dias passados, como nas gerações antigas; não és tu aquele que cortou em pedaços a Raabe e feriu o dragão?" Em Is 27:1, a batalha com o monstro é projetada para o futuro: “Naquele dia, o Senhor castigará com a sua dura espada, grande e forte, o leviatã, a serpente veloz, e o leviatã, a serpente tortuosa, e matará o dragão que está no mar." Quando Daniel vê os quatro ventos do céu agitando o mar grande, e quatro grandes bestas saindo dele (Dan 7), isso também é um reflexo da mesma tradição mítica, assim como a besta que surge do mar no Apocalipse de João.

Fonte: John J Collins, no prefácio do livro The Satan: How God’s Executioner Became the Enemy, de Ryan E. Stokes.

25/05/2020

Por que Gênesis 1 não é ciência? (Parte 3) - Criação Ex Nihilo

Quando lemos o relato da criação de Gênesis 1, nossas pressuposições sobre o que é o universo (nossa cosmologia) levam a nossa mente a pintar o texto como um filme de ficção científica espacial. Imaginamos o escuro do vácuo espacial dando lugar à luz, com Deus criando o planeta Terra como o imaginamos hoje (redondo e com todos os continentes e oceanos), a atmosfera (que acreditamos ser chamada de firmamento), depois os outros astros e, finalmente, as plantas, os animais e o homem. As pontas soltas nessa imaginação -- por exemplo: como haveria dia e noite antes do Sol ser criado? Como Deus criou os céus e a Terra primeiro (Gn 1.1), para depois fazer surgir a terra seca e criar os mares? O que são as águas acima do firmamento? Etc. -- não nos causam muita preocupação, pois fazemos uma espécie de mix entre teoria do big-bang e texto bíblico que faz sentido em nossa mente.

Contudo, a imagem que criamos ao ler o texto é condicionada pela nossa concepção sobre como é o universo e como ele funciona, e essa não era a forma que o escritor de Gênesis entendia o mundo; afinal, como ele poderia pensar como nós sobre o universo se viveu milhares de anos antes da invenção do telescópio ou da primeira nave espacial? A verdade é que o autor desse texto enxergava universo de uma forma totalmente diferente. Ele não pensava em vácuo espacial, o nada, como o estado antes da criação; para ele, antes de Javé começar seu processo de criação do mundo, havia um caos aquático sem forma, sem distinção, sem ordem, sem separação entre seus elementos: o abismo.

Essa palavra é geralmente usada no AT para "oceano", o qual, segundo as ideias hebraicas, circundava o mundo e ocupava as vastas cavidades que estão debaixo da terra: cf. Gn 49:25. Aqui, ela é usada como um nome próprio, sem o artigo; e é muito provavelmente de origem babilônica. No presente verso, a palavra abismo denota a imensidão aquática caótica destinada a ser confinada dentro de certos limites definidos no segundo dia da criação. É concebível que, na mitologia hebraica primitiva, esse t'hôm, ou "abismo", cumprisse o mesmo papel que Tiamtu ou Tiamath tinha na cultura babilônica, "a Deusa do Grande Abismo", que tinha um corpo de dragão, e cuja destruição precedeu as ações criativas do deus supremo da Babilônia, Marduk ou Merodach. Marduk matou o dragão, dividiu seu corpo em duas partes e transformou o céu em uma porção e a terra na outra. (Herbert E. Ryle, The Book of Genesis In the Revised Version With Introduction and Notes). Aqui, vemos a grande semelhança entre o mito criacional babilônico e o relato de Gênesis: assim como o dragão de água teve seu corpo dividido para criar as águas de cima e debaixo da Terra, Javé separa o caos aquático primordial em dois; cf. Gn 1.6-7.

Gênesis 1.2 (e a terra era sem forma e vazia, e havia trevas sobre a face do abismo, e um vento/sopro/espírito de Deus pairava sobre a face das águas) descreve o estado pré-criação, ou seja, mostra o que existia antes de Javé começar a criar: essa cláusula descreve as coisas imediatamente antes do início do processo de criação. Para as pessoas modernas, o oposto da ordem criada é o "nada", isto é, um vácuo. Para os antigos, o oposto da ordem criada era algo muito pior que o "nada"; era uma força ativa e malévola que podemos chamar de "caos". Neste verso, o caos é encarado como uma massa escura e indiferenciada de água. Em Gn 1.9, Deus cria a terra seca (e os mares, que só podem existir quando a água é delimitada por terra seca). Mas em Gn 1.1-2.3, a própria água e as trevas também são primordiais (contraste com Isaías 45.7). No midrash, Bar Kappara mantém a noção preocupante de que a Torá mostra que Deus criou o mundo a partir de material preexistente. Outros rabinos, porém, temeram que reconhecer isso faria com que as pessoas comprassem Deus a um rei que construiu seu palácio em um depósito de lixo, opondo-se arrogantemente à sua majestade (Gen. Rab. 1.5). No antigo Oriente Próximo, no entanto, dizer que uma divindade havia subjugado o caos significava dar-lhe o maior louvor possível. (Jewish Study Bible).

A essa altura, você deve estar se perguntando: mas e Gn 1.1? Esse verso não mostra que Deus criou tudo do nada? Acontece que o problema com essa interpretação é que ela depende de uma tradução equivocada: uma tradição com mais de dois milênios de idade enxerga Gênesis 1.1 como uma frase completa: "No princípio, Deus criou os céus e a terra". No século 11, o grande comentarista judeu, Rashi, argumentou que o versículo funciona como uma cláusula temporal. De fato, é assim que algumas antigas histórias do Oriente Próximo que relatam a criação começam -- incluindo a segunda história da criação que está em Gênesis, a qual tem início em Gn 2.4b. Assim, talvez uma melhor tradução para Gênesis 1:1 seria: "Quando Deus começou a criar o céu e a terra..." (Jewish Study Bible). Mas mesmo que a sentença seja traduzida como normalmente é -- no princípio, Deus criou os céus e a terra -- ela não serve como um ato prévio à ordenação posterior, mas como um título ou descrição resumida do que acontece depois, pois a relação entre Gn 1.1 e 1.2 não é descritiva; o verso 2 não é a explicação/descrição dos céus e terra criados no versículo 1, porque o objeto do v. 1 (céus e terra) é usado, na língua hebraica, para descrever a criação já ordenada, e não um caos a ser ordenado posteriormente. Com isso, mantém-se a interpretação de que a criação parte de algo preexistente, com o verso 1 sendo o resumo/sumário de tudo o que será narrado posteriormente.

Por mais estranho que isso possa parecer para quem faz parte do universo exegético protestante brasileiro, o relato da criação de Gênesis 1 não descreve uma criação ex nihilo, do nada, mas a ordenação do caos primordial que é tido pelo autor, devido à influência cosmológica babilônica, como o estado do mundo antes da criação. 

24/05/2020

Por que Gênesis 1 não é ciência? (Parte 2)

Deveria ser óbvio o fato de que, pela natureza das coisas descritas nesse texto, nenhuma das histórias de Gênesis 1-11 pode ser produto da memória humana, e nem, em qualquer sentido moderno da expressão, relatos científicos da origem e natureza do mundo físico. O homem bíblico, apesar de suas inquestionáveis ​​investiduras intelectuais e espirituais, não baseou suas visões do universo e suas leis no uso crítico de dados empíricos. Ele ainda não havia descoberto os princípios e os métodos da investigação disciplinada, da observação crítica ou da experimentação analítica. Em vez disso, seu pensamento era imaginativo e suas expressões de pensamento eram concretas, pictóricas, emocionais e poéticas. Portanto, é um exercício ingênuo e fútil tentar reconciliar os relatos bíblicos da criação com os achados da ciência moderna. Qualquer correspondência que possa ser descoberta ou engenhosamente estabelecida entre os dois certamente deve ser apenas mera coincidência. Ainda mais sério do que o inerente equívoco fundamental a respeito da psicologia do homem bíblico é o efeito prejudicial sobre o entendimento da própria Bíblia. (Nahum M. Sarna, Understanding Genesis).

Afirmar que Gênesis 1 não é ciência não significa, necessariamente, afirmar que o método científico é absoluto ou que a ciência propõe verdades ontológicos absolutas; significa, a meu ver, simplesmente e somente dizer que o autor desse texto em específico não conhecia o método científico e não utilizou essa linguagem para escrever. Por consequência, também significa que a sua cosmologia não era a mesma que a nossa, e ele tinha uma concepção sobre o formato e função do cosmos que é diferente daquela que temos hoje -- a não ser que você seja um desses terraplanistas que usam chapéu de alumínio. Sim. Para quem ainda não se deu conta: Gênesis 1 descreve a criação de um disco de terra coberto por uma cúpula sólida (chamada firmamento) e rodeado de água por todos os lados, inclusive por cima. Você já parou para se perguntar o que significa separar as águas que estão acima do firmamento das águas que estão abaixo do firmamento (Gn 1:6-7)?

A cosmologia do autor de Gênesis (e de virtualmente todos os autores antigos que escreveram antes da revolução copernicana, bíblicos ou não) via o universo de forma diferente da que vemos hoje, e um dos aspectos dessa cosmologia era acreditar que a porção seca de terra que surgiu no meio do caos aquático primordial não tinha a forma de um globo. Esses autores antigos não tinham noção do que era um planeta. A sua visão de como o universo funcionava e do que se constituia era totalmente diferente da nossa, e essa cosmologia está refletida em vários textos biblicos como Gênesis 1; é essa cosmologia antiga que está por trás de como os autores bíblicos entendiam o universo, de como interpretavam o mundo ao seu redor.

A ideia de que a ciência deve se conformar com a Bíblia nos leva, no final das contas, a espremer Bíblia dentro da forma da ciência. Em outras palavras, acabamos pressupondo que a ciência ratificará o que a Bíblia diz sobre o cosmos, e isso, por sua vez, nos faz ler o texto de forma enviesada para tentar demonstrar que a ciência comprovou a Bíblia. Isso é condicionar a Bíblia à ciência e não deixá-la falar por si só. Acabamos fazendo eisegese. Quando abandonamos o pressuposto de que a Bíblia fala com uma linguagem científica moderna, deixamos que ela fale com a sua própria linguagem e conseguimos entender o texto em seus próprios termos.

22/05/2020

Por que Gênesis 1 não é ciência?

Gênesis 1 é cosmologia antiga. Ou seja, esse capítulo não tenta descrever a cosmologia em termos modernos ou abordar questões modernas. Os israelitas não receberam uma revelação para atualizar ou modificar a compreensão "científica" que tinham sobre o cosmos. Eles não sabiam que as estrelas eram sóis; eles não sabiam que a terra era esférica e se movia pelo espaço; eles não sabiam que o Sol estava muito mais distante do que a Lua, ou mais longe do que os pássaros voando no ar. Eles acreditavam que o céu era material (não vaporoso), sólido o suficiente para sustentar a residência da divindade e também para reter as água acima dele. Nesse sentido, e muitos outros, os israelitas pensavam sobre o cosmos da mesma maneira que qualquer pessoa no mundo antigo pensava, e de forma alguma como alguém pensa hoje. (John Walton, The Lost World of Genesis One).

É evidente que a seção de abertura do Livro de  Gênesis não é um relato científico do processo real pelo qual o universo se originou. O mundo cuja origem é ali descrita é um mundo desconhecido para a ciência -- é o mundo da imaginação antiga, composto por uma vasta extensão de terra que está cercada por -- e repousando sobre -- um mundo-oceano, e coberto por uma abóboda chamada 'firmamento', sobre a qual estão, novamente, as águas de um oceano celestial de onde a chuva desce sobre a terra (veja os vv. 6–8). Que o escritor acreditava que essa era a verdadeira visão sobre universo, e que a narrativa expressa a concepção do autor sobre como esse universo realmente surgiu, não temos, de fato, motivo para duvidar. Mas a diferença fundamental de ponto de vista que acabamos de indicar mostra que, qualquer que seja o significado do registro, ele não é uma revelação de fatos físicos que possa ser alinhada com os resultados da ciência moderna. A chave para sua interpretação deve ser encontrada em outro lugar. (John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis).

Lamentavelmente, o debate Bíblia versus ciência desviou os leitores de Gênesis 1. Em vez de ler o capítulo como uma afirmação triunfante do poder e da sabedoria de Deus, e da maravilha de sua criação, muitas vezes ficamos patinando ao tentar apertar as Escrituras no molde das mais recentes hipóteses científicas, ou ao distorcer fatos científicos para se adequarem a uma interpretação específica. Quando é permitido falar por si, Gênesis 1 olha para além dessas minúcias. (Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary, Volume 1, Genesis 1–15).

21/05/2020

Quem é a serpente de Gênesis 3?

A história sobre uma serpente falante em Gênesis 3 sempre me tirou o sono. Quem era a serpente? O que ela fazia ali? De onde ela veio? Ela é literal ou deve ser interpretada como uma alegoria para o mal? Para Satanás? O grande problema não está no texto em si, mas na concepção que temos dele. Explico: o pressuposto de que a narrativa da criação em Gênesis deve ser entendida como algo que realmente aconteceu na história nos causa problemas que não existiriam se abordassemos o Livro de Gênesis por aquilo que ele é: um texto escrito há milhares de anos, com uma linguagem e imaginário específicos e que tinha o objetivo de explicar como o mundo e seus problemas surgiram. Se entendermos isso, narrativas como essa da serpente--e também do dilúvio, da Torre de Babel e muitas outras--se tornarão mais fáceis de ser compreendidas. Mas, afinal, o que diabos (com o perdão do trocadilho infame) é a serpente de Gênesis?

O que está por trás da ideia do autor usar uma serpente que fala é uma versão mais antiga dessa mesma narrativa; uma história mitológica na qual a serpente aparecia como um demônio ou deus. Essa lenda ou mito fazia parte do imaginário do autor de Gênesis, e foi utilizada por ele para explicar o que aconteceu de errado com o homem que o fez estar na situação em que se encontra. Em outras palavras, o escritor fez uso de uma versão mais primitiva da história da tentação, na qual a serpente tinha o papel de um ser sobrenatural, mas retirou (não completamente) alguns elementos dessa versão antiga e a atualizou para que se conformasse com a sua perspectiva teológica. Envolvendo tudo isso, está a ideia, representada em várias culturas durantes os milênios, de que a serpente possuia algum tipo de poder, o que provavelmente deu origem a esse tipo de mito/lenda. Essa ideia se infiltrou na cosmologia hebraica antiga e foi adotada pelo autor de Gênesis, que pensava dessa forma. Para falar sobre tudo isso, ninguém melhor do que o meu herói da exegese de Gênesis, John Skinner:

A sabedoria da serpente era proverbial na antiguidade, uma crença provavelmente fundada menos na observação das qualidades reais da criatura do que na ideia geral de sua natureza divina ou demoníaca. Nessa passagem, a serpente pertence à categoria de 'animais do campo' e é uma criatura de Javé; e parece haver um esforço para manter essa visão ao longo da narrativa. Ao mesmo tempo, é um ser que possui conhecimento sobrenatural, com o poder da fala, e animado pela hostilidade em relação a Deus. É esse último recurso que causa certa perplexidade. É mais provável que, por trás da descrição sóbria da serpente como uma mera criatura de Javé, houvesse uma forma anterior da lenda na qual ela figurava como um deus ou um demônio.

A atribuição de características sobrenaturais à serpente apresenta pouca dificuldade até para a mente moderna. A maravilhosa agilidade da cobra, apesar da ausência de órgãos motores visíveis, seus movimentos furtivos, seu rápido ataque mortal e seu poder misterioso de fascinar outros animais e até homens, são suficientes para justificar a consideração supersticiosa da qual ela tem sido objeto entre todos os povos. Assim, entre os árabes, toda cobra é a morada de um espírito, às vezes ruim e às vezes bom. O que é mais surpreendente para nós é o fato de que, na esfera da religião, a serpente era geralmente adorada como um  demônio bom. Traços dessa concepção podem ser detectados na narrativa diante de nós. O caráter demoníaco da serpente aparece no fato de ela possuir conhecimento divino oculto sobre as propriedades da árvore no meio do jardim, e no uso desse conhecimento para seduzir o homem de sua lealdade ao seu Criador. 

A serpente é vista de uma forma que nós, pessoas do século 21, não vemos. Existe algo nela (a mitologia antiga de que ela era algo a mais do que um animal) que faz com que seja inimiga do homem. Para compreender isso melhor, a pergunta que precisamos fazer é a seguinte: como o autor de Gênesis entendia uma serpente (ou essa serpente especificamente) e qual é, para ele, o papel dela no processo que levou o mundo a estar ruim do jeito que está? Apesar de o autor colocá-la como um mero animal, por trás disso tudo está essa versão mais antiga, onde a serpente era algo a mais, e o autor explica o problema do homem como vindo desse animal. Skinner continua:

A inimizade entre a raça dos homens e a raça das serpentes é explicada como uma punição por sua tentação bem-sucedida; originalmente, a serpente deve ter sido representada como um ser hostil, de fato, a Deus, mas amigável à mulher, um ser que lhe diz a verdade que a Deidade reteve do homem. Tudo isso pertence ao pano de fundo da mitologia pagã da qual os materiais da narrativa foram extraídos; e é a eliminação incompleta do elemento mitológico, sob a influência de uma religião monoteísta e ética, que faz com que a função da serpente em Gn. 3 fique tão difícil de entender.

Obviamente, essa narrativa (e sua explicação/interpretação) foi desenvolvida ainda mais pela tradição judaica posterior e herdada pelo cristianismo, que a desenvolve até hoje:

Na teologia judaica posterior, a dificuldade foi resolvida, como é sabido, pela doutrina de que a serpente do Éden era o porta-voz ou a representação do diabo. A doutrina judaica e cristã é uma extensão natural e legítima do ensino de Gn. 3, quando o problema do mal passou a ser apreendido em sua verdadeira magnitude; mas é estranho ao pensamento do escritor, embora não se possa negar que esse pensamento possa ter alguma afinidade com o pano de fundo mitológico de sua narrativa. O ensino religioso da passagem nada conhece sobre um princípio maligno externo à serpente, mas a considera o sujeito de quaisquer poderes ocultos que ela mostre: ela é simplesmente uma criatura de Javé que se distingue dos demais por sua sutileza superior. O autor javista não especula sobre a origem última do mal; foi suficiente para o seu propósito ter analisado o processo da tentação de modo que o começo do pecado pudesse ser atribuído a uma fonte que não está na natureza do homem nem em Deus.

Eu sei. Entender a Bíblia dessa forma é muito difícil para quem vem de um ambiente fundamentalista--talvez impossível para alguns. Para aceitar essa interpretação, precisamos mudar totalmente a nossa forma de ver o(s) relato(s) da criação registrado(s) em Gênesis; entender a cultura da qual esse texto saiu. Nós temos tantas e tantas pressuposições teológicas sobre essa narrativa, que para tirar tudo isso da cabeça e tentar entender o que o autor pensava, o que ele realmente queria dizer, se torna uma tarefa complicada. Lemos a palavra serpente e, imediatamente, associamos com Satanás e o mal; pensamos em Jesus como a semente da mulher e no animal sacrificado por Deus para cobrir o homem como o proto-evangelho de Lutero. Mas isso não está no texto; é desenvolvimento teológico posterior. O ponto é que essa interpretação faz sentido do texto; ela explica as coisas; nos faz entrar no horizonte de percepção do autor e entender o que ele queria dizer com essas histórias que parecem tão estranhas para nós; qual era o seu modo de pensar; como ele enxergava a realidade; qual era o imaginário que usou para explicar o mundo e seus problemas.

Fonte das citações: John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis.

19/05/2020

Como o autor de Gênesis entendia o sexo antes da queda do homem?

De vez em quando, percebo como ainda tenho um monte de conceitos teológicos pré-formulados que ainda dominam a minha leitura de textos-chave da Bíblia. Um desses momentos de percepção aconteceu ontem à noite enquanto eu lia um comentário sobre Gênesis e tive uma grande mudança de perspectiva quanto a um detalhe da narrativa sobre a queda do homem.

Eu acho que é possível ler o texto com o imaginário do autor se você tiver o conhecimento contextual/cultural/histórico adequado. Contudo, para adquirir esse conhecimento, depois de tantos anos recebendo informações erradas sobre o texto, não é fácil. Mas qual foi essa nova percepção sobre o texto de Gênesis?

Bem, normalmente se fala, na teologia reformada, que o sexo, o prazer sexual, o saber que está nu, foi algo criado por Deus para o deleite do homem. Eu tinha isso como algo certo em minha cabeça, mas qual foi a minha surpresa ao ler o comentário de John Skinner sobre Gênesis 2:25: O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha. (NVI)

Skinner diz o seguinte sobre essa passagem: O relato não é somente uma antecipação da história contada posteriormente sobre a origem das roupas (3.7: Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de figueira para cobrir-se [NVI]. Nota: Alguém já tinha percebido que esse texto traz uma tentativa de explicação sobre a origem das roupas? Eu não.) Ele chama a atenção para a diferença entre a condição original e a condição atual do homem segundo concebidas pelo autor. A conscientização sobre o sexo é resultado de ter comido da árvore: antes disso, nossos pais primitivos tinham a inocência das crianças, as quais são normalmente vistas nuas no Oriente. (John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, pp. 70-1.)

A afirmação de Skinner parece implicar que o autor de Gênesis acreditava que o homem não tinha a mesma visão sobre o sexo que adquire após a queda. A ideia de estar nu e não perceber é ter a inocência de uma criança, é não ter o tipo de conhecimento que pertence aos adultos. A implicação disso é não conhecer o sexo. Tendo isso em vista, percebi que a interpretação reformada sobre como era a condição humana sobre o sexo antes da queda parece importar uma certa mentalidade científica ao texto, na medida em que busca, na ideia da biologia, uma explicação para como era o homem no seu estado pré-queda; em outras palavras, pensando com um imaginário pós-cientifico, o teólogo reformado importa ao texto um conceito que não estava na cabeça do autor.

Isso me soa bastante irônico vindo de uma tradição que sempre buscou colocar a Bíblia acima de conceitos pré-estabelecidos.

A origem do batismo de João - por Adela Yarbro Collins

Somente dois elementos podem firmemente reivindicar consideração com respeito à questão da origem do batismo de João. Sem esses dois elementos, esse batismo seria ininteligível. Um deles é a tradição e prática das abluções (lavagens, banhos) levíticas. Esse ritual é a fonte última da forma do ritual de João, que aparentemente envolveu imersão total na água. O outro elemento é a tradição profético-apocalíptica. Um aspecto dessa tradição, importante para o batismo de João, era a expectativa de uma intervenção definitiva e futura de Deus. Outro aspecto significativo foi o uso ético das imagens de ablução. Por exemplo, Isaías 1:16-17 exorta o povo:

Lavem-se! Limpem-se! Removam suas más obras para longe da minha vista! Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva. (NVI)

Em alguns textos, como Ezequiel 36: 25-28, as imagens de ablução foram usadas tanto ética quanto escatologicamente. A transformação do povo que Deus faria na restauração escatológica deveria envolver um novo espírito e um novo coração. Essa nova criação deveria começar com uma aspersão divina de água limpa sobre o povo para purificá-lo de seus pecados e atos de idolatria. A tradição de ações simbólicas proféticas também pode ter desempenhado um papel aqui. O batismo de João pode ter tido a intenção de significar a aproximação de Deus como purificador antes do prometido julgamento e transformação. Como já foi observado, as abluções rituais estavam crescendo em importância no tempo de João. Esse desenvolvimento é atestado pela literatura de Qumran, pelas tradições sobre os fariseus, pelas associações nas refeições e pelas tradições sobre indivíduos ascéticos, como Bannos, o professor de Josefo. A tradição de ação simbólica profética e a crescente importância das abluções rituais contribuíram para tornar João naquele que batiza (o Batista), em vez de simplesmente um pregador ou profeta oracular. O significado do batismo de João é melhor entendido em termos de uma reinterpretação profética do sentimento de contaminação em termos éticos e de uma expectativa apocalíptica de julgamento.

Fonte: Adela Yarbro Collins, Cosmology and Eschatology in Jewish and Christian Apocalypticism, Brill, 1996, p. 228-9.
 

16/05/2020

Um breve resumo da vida do Jesus Histórico - por John P. Meier

Um ser humano se torna totalmente humano somente ao se engajar em relações dinâmicas de amizade e amor, inimizade e ódio, controle, subordinação e colaboração com outros seres humanos. Se isso é verdade para os seres humanos em geral, é ainda mais verdade para um líder religioso carismático cujo status e impacto são determinados por suas relações sociais. É especialmente verdade em relação a um judeu em particular do século I, chamado Jesus de Nazaré, cuja vida adulta é amplamente definida em termos de seus relacionamentos com outros indivíduos e grupos na Palestina. O Jesus adulto aparece pela primeira vez ao se juntar a um grupo escatológico específico marcado pelo batismo e arrependimento, um grupo liderado por um indivíduo estranho chamado João Batista.
Ao atrair alguns discípulos desse grupo, Jesus logo começou o seu próprio grupo, com uma nova mensagem do reino de Deus iminente e, ainda assim, presente, uma mensagem dirigida a todo o Israel. Movendo-se de cidade em cidade em um ministério itinerante, Jesus atraiu círculos internos e externos de seguidores dentre seus companheiros judeus. Convenceu pelo menos algumas pessoas de que ele havia curado suas doenças e expulsado seus demônios.  Envolveu-se em disputas religiosas com outros judeus devotos, e presumiu ensinar seus correligionários a observar adequadamente a lei mosaica. Dentro do seu próprio círculo, ele ensinou aos discípulos formas especiais de oração, observâncias e crenças que os marcaram como um grupo identificável no judaísmo palestino do século I. Seu ministério também foi notável pelo fato de atrair seguidores incomuns entre mulheres de alto e baixo status social e incluir comunhão de convívio com um "baixo escalão" social e religioso, como cobradores de impostos e "pecadores". Ainda assim, nem todos os contatos de Jesus foram tão positivos. No final, seus relacionamentos mais negativos se mostraram mortais. A aristocracia sacerdotal em Jerusalém, liderada por Caifás, decidiu que ele era perigoso; e Pôncio Pilatos, o prefeito romano, decidiu que ele era perigoso o suficiente para merecer ser crucificado.
 
Fonte: John P. Meier, A Marginal Jew, Vol. 3, p. 2.

13/05/2020

O valor histórico das narrativas do nascimento e da infância de Jesus - Raymond E. Brown

De certa forma, as narrativas do nascimento e da infância de Jesus são as últimas fronteiras a serem cruzadas no avanço incansável da abordagem científica (crítica) aos Evangelhos. Para os cristãos mais conservadores, essa fronteira pode ser completamente sem demarcação, pois ainda existem muitos que não reconhecem que o material das narrativas do nascimento e da infância tem uma origem e uma qualidade histórica bastante diferente daquela do restante dos Evangelhos. Para esses leitores da Bíblia, a vinda dos magos e a aparição de anjos aos pastores têm exatamente o mesmo valor histórico que as histórias do ministério de Jesus. No entanto, as histórias do ministério dependem, pelo menos em parte, de tradições que vieram dos discípulos de Jesus que o acompanharam durante esse ministério, enquanto não temos informações confiáveis sobre a fonte do material sobre o nascimento e a infância. Isso não significa que as narrativas da infância não tenham valor histórico, mas significa que não se pode fazer suposições sobre sua historicidade com base em sua presença nos evangelhos.

Fonte: Raymond E. Brown, The Birth of the Messiah: A Commentary on the Infancy Narratives in the Gospels of Matthew and Luke, p. 6.

10/05/2020

Apocalipticismo e as origens do cristianismo

O problema essencial de quem, dentro do movimento reformado e evangélico em geral, tenta entender o NT é um só: a total ignorância sobre o que era o judaísmo do primeiro século depois de Cristo. Sem essa peça do quebra-cabeça, tudo fica desconexo, e então surgem todos os malabarismos filosóficos e hermenêuticos criados para tentar explicar coisas que seriam muito simples de ser compreendidas dentro do contexto correto.

Um exemplo prático: se o exegeta não conhece um tópico central do judaísmo do segundo templo, o apocalipticismo, ele nunca, nunca, nunca entenderá Marcos 13: a expectativa de intervenção divina iminente acarretando na possível destruição do templo de Jerusalém e na reconstrução de um novo templo que não teria fim; os últimos dias chegando ao seu momento derradeiro; o julgamento de Deus finalmente acontecendo; a justificação dos filhos de Deus diante das nações.

O termo apocalipticismo é uma designação moderna amplamente utilizada para se referir a uma visão de mundo que caracterizou segmentos do judaísmo primitivo de c. 200 a.C. a d.C. 200, e que se centrou na expectativa da intervenção iminente de Deus na história humana de maneira decisiva para salvar seu povo e punir os inimigos desse povo, destruindo a ordem cósmica caída existente e restaurando ou recriando o cosmo em sua perfeição original. O conhecimento dos segredos cósmicos (uma das contribuições da tradição da literatura de sabedoria para o apocalipticismo) e os iminentes planos escatológicos de Deus eram revelados aos apocalipticistas através de sonhos e visões, e os livros que eles escreveram (os apocalipses) eram primariamente narrativas das visões que tinham recebido e que foram explicadas a eles por um anjo que servia de intérprete (Dictionary of New Testament Background, p. 46).

Outro exemplo: João Batista era um profeta apocaliptico judaico que se destacou por mergulhar/lavar pessoas no rio Jordão como um ritual/ato simbólico que demonstrava arrependimento pelos pecados e intenção de preparação para o dia no qual o Deus de Israel finalmente se manisfetaria visivelmente sobre a Terra, trazendo seu domínio sobre todos os povos e colocando o reino de Israel no centro de tudo. "João certamente se coloca nessa tradição profética e apocalíptica ao advertir todo o povo de Israel que, apesar de todos os mecanismos externos da religião, eles estão sujeitos a um julgamento feroz." (Meier, Marginal Jew, vol. 2, p. 28).

A "ira vindoura", apregoada por João, só pode ser entendida dentro do contexto da cosmovisão dos judeus apocalipticos, pessoas que esperavam uma intervenção divina final sobre a terra para separar o povo de Deus dos demais. Eles chegaram a essa conclusão ao reinterpretar vários textos dos profetas judaicos, entendendo que as profecias sobre essa intervenção divina se tratavam também do final da história presente e começo da história futura, "talvez como resultado da desilusão do período pós-exílico, que incluía sujeição a nações estrangeiras e tensão dentro da comunidade judaica" (Dictionary of New Testament Background, p. 47). Em outras palavras, eles esperavam a vinda do reino de Deus e diziam: arrependei-vos, pois o reino de Deus está próximo. Nossas fontes históricas indicam que Jesus começou seu ministério dentro do círculo de João, saindo posteriormente desse grupo para iniciar o seu próprio círculo de discípulos, fazendo e falando o mesmo que João com algumas modificações de ênfase e entendimento sobre a natureza dessa intervenção divina.

"O apocalipticismo é a principal fonte das narrativas e sistemas simbólicos que inspiraram João Batista, Jesus, a primeira comunidade pós-Páscoa e Paulo. Se estivermos certos em incluir Jesus aqui, poderíamos parafrasear Käsemann e concluir que "o apocalipticismo é a mãe do cristianismo". Para cada um deles, no entanto, especialmente Jesus e Paulo, outras tradições também eram importantes. Jesus se baseou na sabedoria escatológica e até aforística em seus ensinamentos. Ele também era um intérprete da Torá e, aparentemente, um curandeiro e exorcista. Paulo baseou-se na retórica grega e na filosofia popular. Todos esses elementos são importantes. No entanto, as tradições apocalípticas não devem ser ignoradas ou rejeitadas, uma vez que fornecem a estrutura e a lógica para os outros elementos" (The Oxford Handbook of Apocalyptic Literature, p. 338).

Sem isso em mente, o exegeta usará a sua própria imaginação/racionalização filosófica para entender o texto, deixando, assim, de ser um intérprete para se tornar um teólogo--sim, essa distinção, que raramente passa pela cabeça de renomados protestantes brasileiros, deveria estar bem clara. Uma coisa é ler um texto antigo para entender o que ele significou para o autor e seus receptores; outra coisa completamente diferente é usar esse texto como base para um desenvolvimento de pensamento teológico, criando conceitos e definições que ainda não existiam. Não entender o mundo dos primeiros cristãos e não perceber a importância dessa distinção faz com que esses intérpretes importem conceitos teológicos pré-formulados para o NT sem nem perceber. Ao fazer esse enxerto forçado de perguntas que nunca passaram pela cabeça de Jesus ou de Paulo, acreditam que Jesus pensava como eles e que o cristianismo dos autores do NT é o mesmíssimo que o seu. As consequências disso, de acreditar que detêm a revelação de Deus nas mãos, de achar que podem demandar ações de indivíduos por ter a autorização de Deus para isso como receptores da verdade divina, são perigosas--principalmente quando esses intérpretes estão ligados à política, mas isso é assunto para outro texto.