22/12/2020
A natureza multifacetada do cristianismo primitivo (James D. G. Dunn)
18/12/2020
Conclusões sobre a vida do Jesus histórico (E. P. Sanders)
Em seu famoso e influente livro
“Jesus and Judaism”, E. P. Sanders fornece uma lista de conclusões sobre o que
ele acredita ser um resumo do que pode ser dito com segurança a respeito da vida de Jesus de Nazaré. A lista é apresentada nas páginas 326-7.
I. Certeza ou praticamente
certeza:
1. Jesus compartilhou a visão de
mundo que chamei de 'escatologia da restauração judaica'. Os fatos principais
são seu início sob João Batista, o chamado dos doze, sua expectativa de um novo
(ou pelo menos renovado) templo e o cenário escatológico da obra dos apóstolos
(Gl 1.2; Rm 11. 11-13, 25-32; 15,15-19).
2. Ele pregou o reino de Deus.
3. Ele prometeu o reino aos
iníquos.
4. Ele não se opôs explicitamente
à lei, especialmente às leis relacionadas ao sábado e à alimentação.
5. Nem ele nem seus discípulos
pensaram que o reino seria estabelecido pela força das armas. Eles procuraram
por um milagre escatológico.
II. Muito provável:
1. O reino que ele esperava teria
algumas analogias com este mundo: líderes, as doze tribos, um templo em
funcionamento.
2. Os discípulos de Jesus
pensavam nele como 'rei' e ele aceitou o papel, implícita ou explicitamente.
III. Provável:
1. Ele pensava que os ímpios que
aceitaram sua mensagem participariam do reino, mesmo embora não fizessem as
coisas habituais no Judaísmo para expiação de pecados.
2. Ele não enfatizou o caráter
nacional do reino, incluindo julgamento por grupos e um apelo ao arrependimento
em massa, porque essa tinha sido a tarefa de João Batista, cujo trabalho ele
aceitou.
3. Jesus falou sobre o reino em
diferentes contextos, e ele nem sempre usou o termo precisamente com o mesmo
significado.
IV. Possível:
1. Ele pode ter falado sobre o
reino na forma visionária do 'pequeno apocalipse' (Marcos 13 e par.), ou como
uma realidade presente na qual os indivíduos entram um por um - ou ambos.
V. Concebível:
1. Ele pode ter pensado que o
reino, em todo o seu poder e força, estava presente em suas palavras e ações.
2. Ele pode ter dado à sua
própria morte um significado martirológico.
3. Ele pode ter se identificado
com um Filho do homem cósmico e entendido sua conquista da realeza dessa
maneira.
VI. Não pode ser acreditado:
1. Ele era um dos raros judeus de
sua época que cria no amor, misericórdia, graça, arrependimento e perdão dos
pecados.
2. Judeus em geral, e fariseus em
particular, matariam pessoas que acreditassem nessas coisas.
3. Como resultado de seu trabalho, a confiança judaica na eleição foi 'abalada em pedaços', o Judaísmo foi 'abalado em seus alicerces' e o Judaísmo como religião foi destruído.
12/12/2020
Saduceus e a crença na vida após a morte (Anthony J. Saldarini)
04/12/2020
666: o número da besta e o Apocalipse de João
O número da besta é certamente um tópico bíblico que levanta as orelhas do público em geral, mesmo aqueles que não se interessam tanto pelo estudo do Novo Testamento. Com músicas escritas em sua homenagem, o assunto já faz parte até da cultura pop, e a curiosidade está justamente em saber quem é a pessoa cujo número representa. Durante a história, e até mesmo nos dias atuais, vários candidatos foram apontados, dentre os mais famosos, Napoleão, Hitler, Mussolini, vários presidentes norte-americanos e até mesmo o papa. Contudo, o Apocalipse de João, assim como qualquer outro livro da coleção cristã que se chama Novo Testamento, precisa ser lido à luz do seu contexto histórico e social se o objetivo do leitor for entender o que o autor queria dizer. É claro que outros tipos de leituras são possíveis, mas, no meu caso em particular, o interesse é sempre saber a intenção de quem escreveu.
Normalmente, as interpretações modernas sobre quem o número representa partem do pressuposto de que o Apocalipse de João foi escrito para os leitores atuais, e cada nova geração da história do ocidente, provavelmente devido à natureza misteriosa do livro, tem refletido a sua própria experiência vivencial ao ler o livro. É daí que surgem as ideias de que a obra trata sobre a Guerra Fria ou de que a besta é o último político mais poderoso do mundo. Contudo, como um judeu da diáspora que viveu entre o primeiro e o segundo século da Era Comum e que estava inserido em sua época, o visionário João não escreveu a sua revelação pensando na história do século XX ou nos últimos confrontos no Oriente Médio atual. A composição de João foi redigida com olhos para a sua realidade imediata, para as pessoas de sua época e para a situação ao seu redor.
João fazia parte de uma corrente de pensamento judaico que havia surgido pelo menos trezentos anos antes dele, durante os dias em que a Judéia era dominada pelo império grego. Oprimidos por um inimigo externo e, por vezes, até mesmo por seus correligionários, alguns judeus começaram a se perguntar por que o seu povo estava sendo massacrado com impostos e serventia a um poder estrangeiro, mesmo sendo a nação escolhida pelo único Deus verdadeiro. A resposta, certamente por influências de pensamentos advindos de outras culturas, foi encontrada na dicotomia entre o bem e o mal: o mundo atual é dominado pelo inimigo de Deus, Satanás, e a realidade social e política que é vista na Terra é apenas um reflexo daquilo que acontece no mundo celestial, onde uma batalha cósmica entre as forças do bem e as forças do mal acontece. Contudo, na visão desses judeus, Deus venceria a batalha, vindo dos céus com seu exército celestial para derrotar Satanás e seus representantes terrenos: os impérios que dominam os judeus.
Esse pensamento deu origem ao gênero literário que os estudiosos chamam de "apocalíptico", em homenagem ao representante mais famoso do estilo, o Apocalipse de João. Os livros que são catalogados sob esse gênero possuem algumas características em comum: eles são revelações (no grego, apokalypsis, formada pelas palavras apo = retirar e kalumma = véu; por isso, revelação ou retirar o véu, desvelar) trazidas por um ser celestial que conhece a realidade cósmica e a transmite para um escritor humano. Essa mensagem é carregada de símbolos e de uma linguagem oculta, que por vezes é ininteligível ao leitor comum e ao receptor, mas é decodificada pelo revelador. Logo no primeiro capítulo do Apocalipse de João, é possível perceber essas características: trata-se da revelação (apocalipse) de Jesus que ele deu a um anjo para que este a levasse até João. Um exemplo da linguagem codificada e simbólica é visto nos sete candelabros e estrelas que precisam ser explicados pelo anjo: "Quanto ao mistério das sete estrelas que você viu na minha mão direita e quanto aos sete candelabros de ouro, as sete estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candelabros são as sete igrejas" (1:20).
Após a morte de Alexandre o Grande e a divisão do seu império, foi a vez de Roma dominar o território dos judeus. Foi neste período que o visionário João escreveu a sua revelação, e é com essa mentalidade de guerra celestial representada na Terra que ele interpreta a realidade ao seu redor. Isso pode ser visto em diversas passagens do livro onde o autor faz alusão a Roma de maneira quase explícita para os leitores da época.
Roma era conhecida como a cidade das sete montanhas por ter sido fundada em uma localidade geográfica rodeada por sete colinas que cercavam a comunidade romana primitiva. Até mesmo algumas moedas da época carregavam o desenho de uma mulher sentada sobre sete montanhas, um símbolo comum para representar a cidade de Roma. Em mais um exemplo da linguagem simbólica que é decodificada pelo revelador ao escritor, uma figura monstruosa é explicada a João: "Aqui está a mente que tem sabedoria: as sete cabeças são sete montes, nos quais a mulher está sentada" (17:9). Para os leitores, os quais conheciam a história das montanhas de Roma, ficava muito claro sobre quem João estava falando: a grande prostituta que se embriagava com o sangue dos mártires cristãos e que está assentada sobre as sete montanhas era a cidade de Roma, capital do império que, na perspectiva de João, assolava os seus compatriotas.
Um outro bom exemplo de alusão ao império romano no Apocalipse de João é o nome "Babilônia", que era usado na época como um nome simbólico para se referir ao grande inimigo romano que oprimia os judeus, em alusão ao antigo império babilônico que os havia causado grande destruição e levado ao cativeiro. Em sua descrição da mulher assentada sobre as sete montanhas, em mais uma clara referência ao império que a cidade representava, João afirma: “Na sua testa estava escrito um nome, um mistério: Babilônia, a Grande, a Mãe das Prostitutas e das Abominações da Terra” (17:5).
Contudo (e finalmente mais próximo do nosso tópico sobre o número da besta), João usa uma alusão ainda mais forte sobre Roma e seus imperadores: "São também sete reis, dos quais cinco caíram, um existe e o outro ainda não chegou; e, quando chegar, tem de durar pouco tempo. E a besta, que era e não é mais, é também o oitavo rei, mas faz parte dos sete, e caminha para a destruição" (17:9-11). Nesse trecho, João se refere a alguns reis (ou imperadores) desse império, e nos fornece algumas pistas para descobrirmos quem são eles. Ele cita uma sucessão de reis que já se foram (cinco), um que é o rei presente ("existe", sexto), um que não durará muito (sétimo) e finalmente o oitavo, que "era e não é mais, mas que faz parte dos sete", ou seja, um dos reis havia perdido o seu poder (ou morrido?), mas retornaria como o oitavo e último rei, e este também é a besta. De qual imperador João estaria falando?
Na época de João, havia uma lenda popular, famosa entre judeus e cristãos, que falava sobre um imperador romano que havia perdido o seu poder, mas retornaria para tomar o império novamente: Nero. A lenda, conhecida pelos historiadores como Nero Redivivus (Nero Renascido), havia surgido com a crença de que o imperador não havia cometido suicídio, mas fugido para o Oriente, de onde voltaria algum dia. A lenda possuía algumas variantes, as quais também diziam que algum novo imperador surgiria com a mentalidade (forma de viver e governar) de Nero. Muitos na época esperavam ansiosos pelo retorno do imperador, e algumas pessoas, tentando usurpar o poder imperial, apareceram dizendo ser o próprio Nero. É a essa lenda que João se refere quando fala sobre o oitavo imperador que fez parte dos sete, e foi em meio a esse cenário de medo do retorno do imperador que havia queimado cristãos em cruzes para iluminar o seu palácio que o Apocalipse de João foi escrito: a batalha entre Deus e Satanás era refletida na batalha entre os cristãos e o império romano. A lenda do Nero Redivivus nos fornece a pista para decifrar o mistério do número da besta.
No capítulo 13, João fala que o dragão (o qual o autor já havia identificado como o diabo/Satanás: "o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo" 12:9) deu poder à besta, e uma das cabeças dela "parecia ter sido golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada." Mais adiante, em meio a uma série de alusões ao culto do imperador romano, o autor fala sobre "a primeira besta, cuja ferida mortal havia sido curada" e sobre os moradores da terra fazendo "uma imagem à besta, àquela que foi ferida à espada e sobreviveu". Essas são claras referências à lenda sobre o retorno de Nero. Ao final do capítulo com todas essas alusões, João faz um desafio: "Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de ser humano. E esse número é seiscentos e sessenta e seis." O que o escritor queria dizer com "calcular" (ou, mais precisamente segundo o original grego, "contar/somar") o número da besta?
No mundo antigo, antes da adoção do sistema arábico de numeração (os dez símbolos de 0 a 9), cada letra do alfabeto era equivalente a um valor numérico. Por exemplo, a primeira letra do alfabeto grego (alfa = α) representava o número 1, a segunda (beta = β), o 2 e assim por diante, formando dezenas e centenas a cada grupo de dez letras. Com as letras representando números, era possível somar (contar/calcular) o número equivalente às letras que formam um nome. Essa técnica, chamada pelos estudiosos de gematria, era muito utilizada no período em que o Apocalipse de João foi escrito, e servia como meio de falar em segredo, uma espécie de escrita codificada para representar nomes. É disso que João está falando nesse trecho: o autor conclama os seus leitores/ouvintes a decifrar o nome cujo número na gematria é equivalente a 666. Quem seria essa pessoa (número de ser humano)? João já havia dado pistas suficientes: o oitavo rei, aquele que havia sido ferido com ferida de morte, mas que retornaria, aquele que fazia parte dos sete que já haviam passado: Nero César.
O Apocalipse de João
foi redigido em grego. Assim, seria lógico pensar que o nome Nero César escrito
com o alfabeto grego deveria se encaixar com o número 666, mas isso não
acontece. Entretanto, devido ao seu estilo de escrita em grego e a sua teologia,
os estudiosos concordam que o autor era um judeu escrevendo em grego. Como
judeu, ele usou a gematria de forma engenhosa, algo que não era novidade em sua
época e contexto: João usou o alfabeto hebraico para escrever o nome grego Nero
César (Neron Kaisar) e somou os valores equivalentes às letras daquele
alfabeto, não do grego, para chegar ao seu famoso número. Se o nome grego Nero
César for escrito com as letras do alfabeto hebraico, a soma dos números
equivalentes a cada letra resulta em exatos 666: Nrwn Qsr (o
alfabeto hebraico não possui vogais) N = 50, r = 200, w = 6, n = 50, Q = 100, s
= 60, r = 200. Se o nome Nero César for escrito na sua forma latina, ele perde
uma das letras finais (N), e a soma dos valores numéricos do alfabeto hebraico se
torna 616. Esse número aparece em um manuscrito antigo do Apocalipse de João.
Provavelmente, os cristãos responsáveis por essa tradição textual estavam
acostumados com a versão latina do nome e adaptaram o número para que
correspondesse ao que conheciam, no intuito de evitar qualquer engano entre
seus leitores.
Apesar da discordância de alguns comentaristas, essa interpretação sobre
o significado do número da besta no Apocalipse de João é aceita pela maioria
dos estudiosos críticos do Novo Testamento e hoje se qualifica como a mais provável
alternativa dentro do contexto histórico e também exegético do livro.
O Apocalipse de João não fala sobre uma guerra nuclear futura ou sobre visões que um judeu antigo teve a respeito do mundo moderno. Não se trata de um mapa para a interpretação do nosso futuro. Esse livro retrata o contexto imediato de seu autor, o qual se via oprimido por um império mundial que, aos seus olhos, estava conquistando muitos de seus correligionários. Para o visionário João, a batalha cósmica entre Deus e o Diabo estava refletida na sua luta pessoal contra o império romano. Como outros judeu-cristãos de sua época, todos eles adeptos do apocalipticismo, João aguardava a intervenção final de Deus para acabar com o sofrimento dos cristãos de sua comunidade. Para ele, essa intervenção se daria imediatamente (“o tempo está próximo” 1:3), não apenas depois de se passarem dois mil anos de história.
27/11/2020
"E quem é o meu próximo?”: O entendimento do mestre da lei em Lc 10.29 e o questionamento a Jesus - Por Giovane Vargas
22/11/2020
O surgimento da literatura apocalíptica
16/11/2020
O que é o Reino de Deus?
O termo “reino de Deus”, apregoado por Jesus de Nazaré, conforme narrado na tradição sinótica, pode não ter um significado tão claro na mente de muitos leitores do Novo Testamento. O que Jesus queria dizer com “reino de Deus”? Durante muito tempo, essas palavras foram sinônimo de algo invisível que cresce no interior da sociedade humana à medida em que o cristianismo avança entre os homens. Ainda hoje, a expressão pode ser confundida com o crescimento de uma igreja específica, ou de um ramo particular do cristianismo. Contudo, apesar de esses serem possíveis desenvolvimentos de uma hermenêutica pós-moderna que busca o significado do texto para o leitor atual, as palavras “reino de Deus” foram proferidas em um momento histórico específico e por uma pessoa que tinha convicções particulares sobre a sociedade e o mundo ao seu redor.
O primeiro estudioso do Novo Testamento a se atentar ao contexto em que Jesus proferiu a expressão “reino de Deus” foi o alemão Johannes Weiss. À época, a teologia era dominada pelo entendimento liberal de que o reino de Deus era algo espiritual que crescia no coração dos homens e os impelia a se conformarem com a vontade de Deus. Conforme a influência dessas pessoas crescia no mundo, o reino de Deus se expandia até alcançar toda a Terra. Em seu livro “A Pregação de Jesus Sobre o Reino de Deus”, Weiss notou que a expressão não tinha nada a ver com os ideais religiosos da teologia liberal da Europa do século XIX, mas com a visão escatológica de um judeu apocalíptico do começo do primeiro século da era comum.
“Weiss traçou a origem da noção que Jesus tinha sobre o Reino de Deus principalmente para o chamado apocalipticismo judaico tardio. Nesse ambiente de pensamento, havia um dualismo de mundos, um acima e outro aqui abaixo. O que acontece aqui simplesmente reflete o que já aconteceu decisivamente lá em cima. Uma das consequências dessa linha de pensamento é que um dualismo agudo aparece não apenas entre o mundo de cima e este mundo de baixo, mas também entre o governo de Deus e o governo de Satanás.” [Jesus' Proclamation of the Kingdom of God, Johannes Weiss, edited by Richard Hyde Hiers and David Larrimore Holland, Fortress Press, 1971.]
Durante a história do desenvolvimento teológico dos judeus, a ideia de vitória nacional sobre outros povos foi transformada em algo escatológico que chegaria no fim dos tempos, onde Deus julgaria as nações e exaltaria (justificaria) os seus filhos, trazendo finalmente a vitória final de Israel. Para os judeus apocalípticos, que desenvolveram esse pensamento, este mundo, dominado por Satanás, chegaria a um fim com uma intervenção diretamente divina: as forças do mal seriam destruídas e Deus finalmente governaria toda a Terra com seu povo. Quando Jesus falava da aproximação do reino de Deus, era exatamente isso que ele queria dizer: o governo (reino) de Deus está chegando à Terra, um tempo onde os maus serão destruídos e os filhos de Deus serão recompensados por seus sofrimentos; onde aqueles que choram serão consolados; onde aqueles que formam o último estrato da sociedade serão exaltados e os ricos e poderosos serão humilhados; onde a ordem do mundo seria invertida; onde os últimos serão os primeiros; onde a vontade de Deus seria feita assim como é feita no céu. Portanto, o reino (ou reinado) de Deus é algo supramundano, algo que vem de fora e é trazido sem o esforço humano, mas exclusivamente por Deus.
Segundo pontuou Rudolf Bultmann ao avaliar o impacto de Johannes Weiss para o entendimento desse tema, no livro de Weiss, “uma compreensão consistente e abrangente do caráter escatológico da pessoa e da proclamação de Jesus foi alcançada e o curso de novas pesquisas foi definitivamente indicado.” Para Bultmann, o trabalho de Weiss e de seus colegas trouxe à luz a estranheza do Novo Testamento para a mente moderna; nos fez perceber que nossos conceitos não são exatamente os mesmos dos escritores; mostrou que expressões tomadas por nós como certas em seus significados na realidade carregavam ideias muito diferentes para aqueles que as proclamaram pela primeira vez.
09/11/2020
Como o autor de Gênesis entendia a divisão entre os animais terrestres, ou: Gênesis não é um livro de biologia escrito por um naturalista vitoriano
“Disse também Deus: Produza a terra seres viventes, conforme a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua espécie. E assim se fez. E fez Deus os animais selváticos, segundo a sua espécie, e os animais domésticos, conforme a sua espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie. E viu Deus que isso era bom.” (Gênesis 1:24-25)
Uma das coisas que ficam claras com a leitura do primeiro relato da criação narrado em Gênesis (1:1 a 2:3) é que o autor (ou autores/editores) pretende explicar como o mundo que ele conhece veio a existir. Uma das características desse mundo é a divisão clara entre os tipos de animais que pode ser percebida em qualquer lugar da terra. Existem diferenças óbvias entre grupos de animais, e o autor de Gênesis, juntamente com a tradição teológica que herdou, percebeu isso e buscou explicar como Deus os havia criado.
Contudo, a tradução em português pode nos dar a impressão errada sobre como o autor pensava sobre esses grupos, porque as palavras usadas para descrever as diferenças já estão carregadas de um significado moderno que era desconhecido para o autor original. Por exemplo, quando ouvimos a palavra “espécie”, logo a interpretamos segundo o viés evolucionista que classifica animais em grupos e subgrupos segundo uma definição muito específica. Contudo, é claro que o autor de Gênesis não tinha conhecimento algum sobre os pensamentos de Darwin ou sobre a biologia moderna. A palavra hebraica traduzida por "espécie" em Gênesis tem a ver com "tipo", e não corresponde à definição que a biologia moderna traz dessa palavra. Ela reflete uma divisão superficial/simples/grosseira feita por alguém que observa o comportamento dos animais e procura explicar a sua origem levando em conta particularidades expressivas; alguém que olha para um morcego e o classifica como ave porque ele voa. Portanto o termo original jamais deveria ser traduzido como "espécie", pois isso só confunde o leitor, fazendo-o achar que o autor pensava como um biólogo do século XXI.
Uma clara divisão apresentada em Gn 1:24-25 são os animais domésticos, répteis e animais selváticos. Esses termos podem dar a impressão de que o autor estava falando das mesmas classes de animais que conhecemos e que aceitamos hoje. Por exemplo, animais domésticos são gatos, cachorros, hamsters, peixes dourados, etc.; répteis são jacarés, cobras, tartarugas, etc.; e animais selváticos (ou selvagens) são gorilas, cangurus, lobos, elefantes, girafas, etc. Contudo, não foi bem assim que o autor de Gênesis classificou os animais nesse texto.
A divisão tem mais a ver com animais que são "cultiváveis", como bois, porcos e cabras; animais não cultiváveis, como leões, ursos e tigres; e também animais que rastejam, um grupo que poderia abranger desde cobras e lagartas, até pequenos quadrúpedes e animais que classificaríamos como anfíbios. Deveria ser algo claro para o intérprete de Gênesis o fato de que o autor conhecia apenas os animais da sua região. Portanto, não se pode pensar que ele estaria falando de um alce, por exemplo, porque esse animal não existia no Oriente Próximo há cerca de 3 mil anos atrás, contexto de onde surgiu o livro de Gênesis.
Em seu comentário de Gênesis, John Skinner afirma que “a classificação dos animais é tripla: (1) animais selvagens (basicamente carnívoros); (2) animais domesticados (herbívoros); (3) répteis, incluindo talvez insetos rastejantes e quadrúpedes muito pequenos. Uma divisão tríplice um tanto semelhante aparece em uma tábua da Babilônia - ‘gado do campo, bestas do campo e criaturas da cidade.’” (John Skinner, A Critical and Exegetical Commentary on Genesis, pp. v-vi).
Portanto, o autor era uma pessoa que estava tentando explicar o mundo como o enxergava, carregando consigo toda a sua ideia teológica pré-estabelecida. Ele não é um naturalista inglês do final do século XIX que estava catalogando animais com a teoria de Darwin na cabeça, mas um hebreu do Oriente Próximo que viveu há milênios atrás e que, com influências religiosas e culturais do seu contexto local e temporal, estava mostrando a sua visão de como Deus havia ordenado o mundo que esse autor conhecia.
Isso é algo muito óbvio, e só não o enxerga quem acredita que o relato da criação narrado em Gênesis é uma revelação direta de Deus sobre como as coisas são. A pessoa que acredita nisso faz a seguinte racionalização: Deus sabe de cada detalhe do mundo; em Gênesis, o próprio Deus revelou como esse mundo foi criado e como ele funciona; a ciência moderna mostra que existem vários animais na terra e os classifica de certa maneira; portanto, Gênesis está falando de todos esses animais, sem distinção alguma do contexto social e do horizonte de consciência do autor. Apesar de essa forma de pensar fazer sentido para a apologética cristã que mistura Gênesis com ciência moderna e que tenta comprovar a Bíblia usando o método científico, ela não funciona para a exegese sincera de quem quer apenas entender o texto por aquilo que ele é.
07/11/2020
O fundamentalismo evangélico e a autoria mosaica do pentateuco
05/11/2020
Moisés realmente escreveu o Livro de Gênesis? - Por Hermann Gunkel
01/11/2020
Abraão: personagem histórico ou reflexo da religião judaica?
28/10/2020
Liberal(ismo): de movimento histórico-teológico a uma palavra "lacradora" - Por Giovane Vargas
Artigo escrito por Giovane Vargas.
O fenômeno do liberalismo teológico perdurou da metade final do século XVIII até as primeiras décadas do século XX e teve nomes altamente conhecidos no cenário da teologia cristã, como Friedrich Schleiermacher, Albrecht Ritschl, Albert Schweitzer, Ernst Troeltsch, Julius Wellhausen, Adolf von Harnack e tantos outros que, de alguma forma, contribuíram com o protestantismo de sua época na luta apologética para trazer respostas cristãs ao homem moderno, herdeiro do racionalismo, deísmo e iluminismo, que havia abandonado a linguagem metafísica, o transcendentalismo e se voltado a questões sociais, biológicas e tecnológicas como prioridade.
Já o movimento fundamentalista cristão teve sua origem entre Estados Unidos e Grã-Bretanha na transição dos séculos XIX e XX de maneira reativa ao liberalismo e àquilo que era considerado um grave rompimento com questões que desvirtuariam o protestantismo até que ele deixasse de existir. Esse movimento traz algumas marcas em sua teologia, mas uma delas se sobrepõe, a saber, a relação com o texto bíblico como sendo a própria divindade (infalível, inerrante) manifestada nas letras em diálogo direto com o cristão. Com isso, o fundamentalismo reassume e amplia a visão de Lutero e Calvino, abrindo mão do método histórico-crítico no exame das escrituras (o qual havia sido adotado pelos teólogos liberais) para aplicar (ou reaplicar) uma forma de análise que levava em consideração a impossibilidade de erro na “revelação especial de Deus”, assim denominada pelo fundamentalismo e sua dogmática.
Após essa pequena exposição do curso histórico da teologia protestante e do surgimento desses dois fenômenos, passemos a analisar exclusivamente o uso do termo "liberal" no cenário evangélico brasileiro fundamentalista:
1) Liberal = roupas da moda. Esse primeiro uso do termo é oriundo do meio pentecostal clássico ou missionário, que é fruto do fundamentalismo da primeira década do século XX e que trazia consigo a herança da vestimenta dos pais peregrinos que povoaram os Estados Unidos e dos nobres britânicos do século XIX. Esse termo começou a ser usado para se referir aos adeptos das novas vestimentas que a indústria produzia e que a televisão passara a divulgar. Posteriormente, o termo viria a ser aplicado em várias outras situações, como para pessoas que frequentavam praias e usavam trajes de banho ou até para se referir a métodos de outras denominações do mesmo movimento fundamentalista.
2) Liberal = colocar em dúvida o dogma da inerrância e/ou infalibilidade da escritura. Essa taxação, tão visível nas redes sociais do protestantismo confessional ou pentecostal que, até hoje, se baseiam no fundamentalismo, tornou a palavra como algo "lacrador" por ser usada única e exclusivamente para atacar pessoas de posicionamento considerados "heterodoxos" em relação ao movimento considerado correto, “ortodoxo”, e a infalível escritura; para denegrir seres humanos que pensam de forma distinta sem um debate de percepções de mundo para o real progresso da fé cristã, buscando o ferimento da imagem de pessoas consideradas “teologicamente erradas”. Em contrapartida, o tão “errôneo” movimento que foi denominado liberalismo teológico surgiu com a ideia da necessidade de preservar a fé cristã em tempos modernos.
O movimento fundamentalista que tem
cooperado para a preservação de valores cristãos que formaram a civilização
brasileira também tem servido de palanque para resgatar uma espécie de
"inquisição" contra todas as pessoas que se afirmam como cristãs, mas
que não compactuam com os dogmas do fundamentalismo. Por certo, a democracia,
que está em risco nas mãos dos progressistas, também estará em risco nas mãos
de algum fundamentalista que criou seus termos lacradores.
28/09/2020
A limitação histórica dos evangélicos
Em seu famoso livro, "O Que é Cristianismo?", o grande historiador alemão Adolf Von Harnack explica a limitação que Martinho Lutero tinha em sua época para conseguir separar dogma de história:
“Esse gênio [Martinho Lutero] tinha uma fé tão robusta quanto a de Paulo e, portanto, um imenso poder sobre a mente e o coração dos homens. Mas ele não estava a par do conhecimento que era acessível mesmo em sua própria época. A era ingênua [pré-renascentista e pré-humanista] havia passado; [os dias de Lutero eram] uma época de profundo sentimento, de progresso, uma época em que a religião não podia evitar o contato com todas as faculdades da mente. Nessa época, era seu destino ser forçado a ser não apenas um reformador, mas também um líder intelectual, espiritual e professor. A maneira de ver o mundo e a história, ele teve que planejar novamente para as gerações que viriam, pois não havia ninguém para ajudá-lo, e as pessoas não ouviriam ninguém mais além dele. Mas ele não tinha todos os recursos do real conhecimento à sua disposição. Por último, Lutero estava ávido para voltar ao original, ao Evangelho mesmo, e, na medida em que foi possível fazê-lo por intuição e experiência interior, ele o fez. Além disso, também fez alguns estudos admiráveis de história e, em muitos lugares, rompeu vitoriosamente com as linhas serradas dos dogmas tradicionais. Mas qualquer conhecimento confiável da história desses dogmas ainda era uma impossibilidade, e menos ainda, qualquer familiaridade histórica com o Novo Testamento e o cristianismo primitivo era possível. É maravilhoso como, apesar de tudo isso, Lutero possuía tanto poder de penetração e julgamento são. Para perceber isso, basta olhar suas introduções aos livros do Novo Testamento, ou seu tratado sobre "Igrejas e Concílios". Mas havia inúmeros problemas que ele nem conhecia, quem dirá ser capaz de resolver. Assim, Lutero não tinha meios de distinguir entre cerne e casca, entre o que era original e o que havia vindo de fora. Como podemos nos surpreender, então, se em sua doutrina, e na visão que ela teve da história, a Reforma estava longe de ser um produto acabado; e que, onde não percebia problemas, a confusão em suas próprias ideias era inevitável? A Reforma não poderia, como doutrina, fazer mais do que marcar um início, e ela precisaria contar com o desenvolvimento futuro.”
Harnack reconhece o óbvio constatado pela lógica do desenvolvimento do pensamento humano: a pesquisa científica sobre a Bíblia e o cristianismo primitivo avançou muito desde a reforma protestante, e Lutero, apesar de ter sido pioneiro em muito do que posteriormente se tornaria a pesquisa histórica sobre o cristianismo, não possuía as ferramentas necessárias para entender a natureza da Bíblia como documento histórico. Com isso, suas conclusões sobre como os primeiros cristãos pensavam não poderiam estar completamente corretas. A pesquisa histórica moderna sobre como pensavam os primeiros cristãos demonstra que Lutero, por sua incapacidade investigativa mais aprofundada neste assunto, não percebeu o abismo enorme entre aquilo que se definiu sobre Jesus Cristo no Credo de Nicéia e aquilo que era a variada e efluente teologia cristã em formação no primeiro século.
Contudo, apesar da evolução na pesquisa científica sobre o cristianismo primitivo, o movimento evangélico moderno, principalmente aquele mais focado na teologia e história da reforma protestante, o novo calvinismo digital, os reformados (uso o termo de forma abrangente), desconhece (ou joga para escanteio dizendo se tratar de coisas daquele “câncer chamado liberalismo teológico”) as limitações dos pensadores da reforma e acredita que aquele foi o ápice da redescoberta do que era o cristianismo sem a capa da “tradição católica”. O problema é ainda mais agudo no Brasil, onde quase nenhuma das grandes obras de pesquisa histórica sobre o tema foram publicadas (com honrosas exceções).
Os problemas acarretados por essa ignorância histórica são claros: ao se embasar totalmente em Lutero, sua época, limitações de pesquisa, maneira de pensar e conclusões -- mesmo que um pouco mais elaboradas por Calvino e os puritanos -- a ideia protestante fundamentalista contemporânea falha em pressupor que a Bíblia é algo uniforme e sem divergências internas, e falha também em achar que os apóstolos tinham um entendimento único sobre quem era Jesus. O protestantismo fundamentalista erra em achar que o cristianismo pós-niceno é o cristianismo primitivo, quando, na realidade, o cristianismo inicial era uma seita messiânica/apocalíptica judaica e nada mais. Em outras palavras, o protestante fundamentalista acredita que se livrou da tradição católica para voltar ao cristianismo original "de Jesus", quando, na realidade, apenas descartou alguns dogmas para voltar à/se purificar na tradição de Nicéia, sem perceber que o Jesus do credo niceno é um desenvolvimento teológico de quase quatrocentos anos. Ao rejeitarem o criticismo e encararem a Bíblia não como uma fonte histórica, mas como um todo fechado e sem erros, os protestantes do movimento evangélico se prendem a Lutero e participam de seus erros e limitações.
11/09/2020
Hermenêutica histórica: descrever o passado ou encontrar a verdade? Por Rudolf Bultmann
08/09/2020
Jesus Cristo, Reino de Deus, Escatologia e Apocalipticismo - por Rudolf Bultmann
02/09/2020
Teologia não é história (parte 2)
"Um homem tem de estar livre de
toda fiscalização externa para ter a certeza de que olha para si mesmo e não
para um papel social – e só então ele pode fazer um julgamento totalmente
sincero." – Olavo de Carvalho
"É preciso saber quando está
certo duvidar. Alguns afirmam que tudo pode ser provado porque eles não sabem
nada sobre provas." – Blaise Pascal
“Mas, ao menos no que diz respeito ao
mundo material, é possível dizer o seguinte: percebemos que os eventos não
ocorrem por interposições isoladas de um poder divino que é exercido em cada
caso particular, mas pelo estabelecimento de leis gerais.” – W. Whewell
“Para concluir, portanto, que ninguém pense ou
afirme – seja a partir de um conceito fraco de sobriedade, seja por uma
moderação mal aplicada – que é possível pesquisar em demasia ou ser
excessivamente bem versado no livro da palavra de Deus ou no livro das obras de
Deus, isto é, teologia e filosofia, mas que as pessoas se esforcem por um
avanço infinito ou proficiência em ambas.” – Francis Bacon
"Foi uma experiência libertadora
– fiquei livre de ter de assegurar que minhas descobertas sobre qualquer
questão estavam apropriadamente de acordo com as tradições que eu havia herdado
– livre para buscar a verdade nos seus próprios termos, para deixar os textos
de o Novo Testamento moldar minhas opiniões e não o contrário (...) O exegeta
deve permitir que o escritor permaneça nos horizontes do seu tempo; seus textos
podem vir a significar mais, mas esse “mais” não deveria ser atribuído ao autor
original." – James D. G. Dunn
Como alguns leitores mais antigos deste blog podem ter percebido, devido às minhas leituras de autores que não fazem parte da tradição evangélica, eu venho mudando a minha visão sobre muitas coisas na teologia, principalmente no que se refere às afirmações apologéticas de que a história (ou o método histórico) é a base que sustenta a fé cristã. Não me vejo mais influenciado pelo movimento evangélico, mesmo o mais acadêmico, e acabei por me livrar do modo de pensar apologético. Como já falei em outras postagens, a minha questão sempre foi entender a Bíblia, e percebi que os autores mais críticos respondem muitas coisas que a apologética finge não ver ou traz respostas muito convenientes para quem quer apenas confirmar aquilo que já acreditava de antemão. Em outras palavras, a apologética não se importa em descrever a realidade, mas simplesmente em defender a fé (por mais que os apologetas digam que estão sim mostrando a realidade), e o que eu quero é exatamente isso: entender as coisas ao meu redor custe o que custar.
Em parte, alguns autores críticos também tentam apenas ratificar aquilo que já acreditavam, mas mesmo esses têm uma abordagem diferente daquela utilizada pela apologética evangélica. Não existem muitos apologetas do ateísmo no meio acadêmico bíblico, exceto em alguns casos mais idiotas que ficam na cara, como alguns autores do Jesus Seminar ou aqueles que negam a existência de Jesus de Nazaré. Acho que a grande prova disso são os cristãos que estão no meio acadêmico e corroboram com todas as proposições do método histórico crítico, mas que separam a fé da história e têm a consciência de que a fé cristã não pode ser baseada num método científico de pesquisa sobre o que é provável que tenha acontecido no passado.
Minhas novas leituras me convenceram de que o método histórico não tem condições de ratificar a fé cristã, e a visão evangélica sobre a inerrância da Bíblia tem problemas claros e insolúveis (a não ser que você esteja buscando respostas bobinhas para resolver o medo de mudar de opinião). A rejeição da Bíblia não precisa ser um resultado necessário disso. Talvez a neo-ortodoxia tenha suas vantagens nesse ponto: os evangelhos testificam sobre Jesus, e a fé ratifica a verdade sobre a tradição da igreja quanto ao que ele era. Contudo, a história está aquém disso. Ela não tem os meios de provar as afirmações da fé, pois como provar a fé cristã empiricamente? Eu não sei se isso é possível. O historiador, na qualidade de historiador, pode afirmar o que provavelmente aconteceu durante a prisão e a morte de Jesus, mas ele não tem meios de afirmar que Jesus morreu pelos pecados dos homens. Isso acontece por um motivo que parece ainda não estar claro para muitos apologetas que tentam provar a fé cristã por meio do método histórico: essa abordagem científica do passado, a forma que desenvolvemos para acessar aquilo que de mais provável tenha acontecido, não tem acesso ao mundo sobrenatural, apenas a este mundo natural. Isso significa que o método histórico utiliza a analogia para saber o que provavelmente aconteceu ou não, e eventos sobrenaturais não podem ser analisados dessa forma. Eles fazem parte de outra esfera.
Essa mudança de perspectiva fez com que as minhas observações se tornassem mais históricas. Não me preocupo muito com o lado teológico porque o que sempre busco é entender o texto, e a teologia não explica o texto, ela fornece um significado transcendental a ele e o desenvolve dentro da tradição. Como sou cristão e acredito nos credos da igreja, a teologia não é um ponto de preocupação constante para mim. O que me deixa inquieto é a história: eu quero entender o que a Bíblia diz e como a mentalidade do autor se formou para que ele pudesse dizer o que disse.
Um exemplo dessa abordagem é o Jesus histórico. O Jesus histórico é aquele que pode ser reconstruído pelo método histórico, aquele que qualquer historiador poderia acreditar ter existido. O Jesus real é aquele que foi experienciado pelos primeiros cristãos e ainda pode ser (se você acredita nisso). É o sentimento da presença real dele na comunidade que gera os textos e os desenvolve na teologia. Esse Jesus experienciado posteriormente é fruto de reflexão teológica da comunidade tentando explicar e entender o Jesus que foi conhecido em carne e osso pelos primeiros discípulos. O Jesus histórico é o Jesus que pode ser encontrado através da aplicação do método histórico, e esse método tem as suas limitações. Aquilo que vai para além disso é experiência religiosa, e o Jesus real pode mesmo estar aí, na experiência, na nossa vida hoje, na nossa devoção religiosa. Eu só não tenho ferramentas metodológicas para demonstrar isso. A subjetividade reina nesse campo, e talvez apenas santo Bultmann poderá nos dar uma ajudinha aqui.
Outro exemplo claro pode ser o significado de Isaías 7:14: “Portanto, o Senhor mesmo lhes dará um sinal: eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel.” Em seu contexto histórico, esse texto fala de Jesus? As dificuldades dessa interpretação são enormes, a começar pelo fato de que a tradução grega da bíblia hebraica que os primeiros cristãos helenistas (que geraram os evangelhos) usaram traduziu o termo hebraico para “jovem” como “virgem”, isto é, os cristãos usaram uma tradução equivocada para falar sobre o nascimento virginal. Ao invés de se tratar de uma profecia sobre Jesus que foi realizada, o texto de Isaías foi reinterpretado por cristãos que queriam entender o significado de Jesus e buscaram isso nos seus escritos sagrados. Em outras palavras, eu acho que Mateus reflete a busca da comunidade primitiva pelo entendimento de quem foi Jesus e o que ele significou. Ao buscarem respostas nos seus textos sagrados, os discípulos encontraram passagens que atribuíram a Jesus. Eles não se importaram com o contexto histórico dos textos, mas os usaram de uma forma muito livre porque simplesmente não enxergavam o espaço de tempo que havia entre eles e o texto da mesma forma que o homem de hoje, vivendo em um mundo pós-critico, enxerga. Isso é mais ou menos o que algumas comunidades evangélicas com um pensamento acrítico fazem hoje em dia: o texto é vivo e pertence à comunidade, a qual os usa como se Deus estivesse falando com eles. Isso é usar o texto para fazer teologia, não história.
Os primeiros cristãos – e quem escreveu o NT – não tinham a mentalidade moderna que nós temos. Parte dessa mentalidade moderna é o método histórico, que foi desenvolvido no século 19. Ou seja, eles não entendiam história como nós entendemos e não utilizavam o mesmo método para entender o que é a história que nós utilizamos. Portanto, o que eles faziam com a Bíblia não é o que fazemos hoje. Não podemos achar que essas pessoas olhavam para os textos antigos da mesma forma que olhamos. Eles usavam esses textos como parte da sua vida imediata. Para eles, não se tratava de um documento histórico, mas de algo que fazia parte do seu presente e era usado dentro da sua convivência como comunidade. Eles se apropriavam do texto, usavam o texto como se fosse deles, não era algo deslocado do seu tempo, uma coisa do passado. Dentro da interpretação e utilização desse texto para responder as dúvidas da comunidade, as ideias do texto se desenvolviam e isso gerava teologia, novas abordagens e novas conclusões. Os primeiros cristãos, no contexto de sua experiência com Jesus de Nazaré em vida e com a experiência da ressurreição, utilizaram esses textos sagrados para entender quem era Jesus. Dentro desses textos, eles encontraram aquilo que aconteceu com eles e Jesus e os usaram para explicar a sua experiência. Nessa busca por significados, os primeiros cristãos não estavam preocupados com o contexto histórico antigo do texto, pois não tinham o método histórico que temos hoje e não entendiam o texto como sendo algo distante deles. O texto era algo deles e para eles.
Esse tipo de abordagem à Bíblia pode soar muito estranho para quem faz parte da tradição evangélica e usa a Bíblia da mesma forma que os primeiros cristãos usaram o AT. A diferença está em aplicar o método histórico à Bíblia, fazer uma análise crítica, tratá-la como qualquer outro documento antigo, e não tomá-la como garantida e verdadeira por conta do pressuposto de que ela seja a palavra de Deus inerrante: você pode entender a Bíblia como um documento antigo e digno de ser avaliado criticamente, assim como qualquer outro texto, e/ou pode recebê-la como Escritura Sagrada, mas não pode achar que os documentos são totalmente confiáveis historicamente e fechar os olhos para os problemas que contêm. Como um historiador, você analisa o texto de forma crítica; como teólogo, admite que o método histórico não tem todas as respostas e faz teologia consciente de que ela é filosofia da igreja confessante que busca compreender o significado de Jesus. Eu acho que esse foi mais ou menos o caminho que os teólogos dialéticos tomaram. Quem sabe eles tinham mesmo razão.
24/08/2020
O apocalipticismo de Jesus e João Batista
A relação de Jesus com o apocalipticismo
15/08/2020
O desenvolvimento do pensamento teológico da Igreja - por Paula Fredriksen
12/08/2020
Paulo adorava Jesus como Deus? Por James D. G. Dunn
Nota: trecho retirado do livro Beginning from Jerusalem, de James D. G. Dunn, p. 579.
A confissão de Jesus como Senhor trazia consigo a implicação de que Paulo adorava Jesus como Deus e esperava que seus convertidos também o fizessem? A pergunta é mais complexa do que pode ser respondido com um simples Sim ou Não. Certamente, Paulo não hesitou em usar textos que falavam de Javé para se referir a Jesus; podemos notar particularmente o uso do fortemente monoteísta Isaías 45:23 no reconhecimento universal antecipado do senhorio de Cristo (Filipenses 2:11), e a maneira notável como Paulo parece incorporar Cristo dentro do Shemá de Israel (Deuteronômio 6:4) em 1 Coríntios. 8:6. O que não está claro, no entanto, é até onde Paulo concebia que o Jesus exaltado compartilhava a divindade de Deus em vez de simplesmente (!) compartilhar o (exercício de) senhorio. Sua conversa bastante frequente de Deus como "o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" é igualmente notável, assim como sua elaboração mais explícita da relação entre Deus e o Cristo exaltado em 1 Coríntios 15:24–28. É certamente verdade que Paulo descreveu os cristãos como 'aqueles que invocam o nome do Senhor' (1Co 1:2), invocaram a Cristo (1Co 16:22), suplicaram sua ajuda na oração (2Co 12:8) e que ele não hesitou em ligar Deus Pai e o Senhor Jesus Cristo nas suas bênçãos em suas cartas. Mas também é verdade que Paulo nunca dirige sua oração de agradecimento (eucharisteō, eucharistia) ou suas petições normais (deomai, deēsis) a Cristo; ele nunca 'glorifica (doxazō)' Cristo, cultualmente 'serve (latreuō, latreia)' a Cristo, ou 'adora (proskyneō)' Cristo. Mais típico é que seus agradecimentos e orações sejam oferecidos 'por meio' de Cristo a Deus. Igualmente significativo, dado que toda a sua missão estava sob constante crítica de judeus crentes mais tradicionalistas, é que nunca há qualquer indício de que tais judeus encontraram qualquer motivo para crítica na cristologia de Paulo sobre o senhorio de Jesus, isto é, não vemos judeus criticando Paulo porque o ensino dele era considerado uma violação à unidade de Deus e do direito de ser adorado que só Deus tinha. Visto que a hostilidade judaica à atitude de Paulo para com a lei, embora refletida pelos crentes judeus, é tão clara, é estranho imaginar que tenha existido uma objeção mais séria à sua cristologia (além daquela implícita em 1 Coríntios 1:23 e Gal. 3:13) que não foi refletida de uma forma equivalente a 1 Coríntios 1:23.